Abriu o arquivo onde ficam guardadas as boas lembranças, pegou um livro e folheou algumas páginas em que  um homem de sobrancelhas fechadas dava a Emília os primeiros traços de vida.

— Se  esquadrinhamos cada personagem, vamos  encontrar recortes da personalidade do criador. 

Ele não se livra  de suas próprias lembranças. Mais cedo ou  mais  tarde, elas aparecem na face ou na alma de seus personagens. O autor coloca um pouco dele mesmo em cada personagem que cria.


— Entendeu,  Emília?
— Não consigo processar tanta informação, derramada assim de uma só vez. É justo fazer  isso com uma boneca que tem cérebro de pano?
— Bob também pensava assim. Hoje ele reconhece que devemos apenas levantar hipóteses.
— O Bob só existe em tua  imaginação, princesinha. Ele não é real!
— Claro que o Bob existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert    e Bob são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert  é Bob. Para minha mãe, Robert é apenas o filho da quase vizinha.
— E pra ti?
— Para mim, Bobinho... Às  vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’.)
— Bob não é bobo! (ô)
—Bobinha é forma carinhosa de tratar uma  pessoa de nossa intimidade.  Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser  quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.
— Entendi quase tudo.

Esperou Emília acusá-la de plágio ou pelo menos paralelismo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala com o diálogo do pequeno príncipe e a raposa de Bach. Mas a boneca, a  boneca simplesmente  acrescentou:
— Começas a amar uma pessoa, no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estará perto. Isso é quase perto.

Ficou contente, porque Emília aprendeu o que lhe foi ensinado. E nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca.

***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou"
 
Enviado por Adalberto Lima em 16/04/2018