Coincidências
Era habitual, a caminho do trabalho, parar na banca da Comendador Fontana com a Cândido de Abreu para ler as manchetes dos jornais. Fã dos Beatles, naquele dia chamou-me a atenção a capa da revista Veja com a foto do John Lenon e em letras garrafais a chamada “Lennon e o Nosso Tempo”. Apenas essa frase enigmática e nada mais.
Tentando imaginar a relação entre o cantor e os tempos atuais eu percorria com os olhos as diversas publicações até parar em uma revista feminina, para mim desconhecida, a GQ, mais tarde fui saber que era uma revista portuguesa. Na capa, a bela modelo Jani Gabriel usava saltos impressionantes. Permaneci ali por algum tempo, divagando sobre como as mulheres conseguiam a façanha de equilibrar-se em algo tão instável, como um sapato ou sandália de salto alto, mas, que ao mesmo tempo conferia um certo ar de poder e graça a estes seres fantásticos.
Qual homem não pararia para ver tal espetáculo, pensei, e nesse momento senti um empurrão que quase me fez abraçar a parede da banca. Um movimento felino e consegui me safar de uma possível queda. Recuperado do esbarrão, virei para traz e vi estatelada no chão uma loura, alta, de cabelos longos, Calça, blusinha branca, um blaser e claro, sapatos de salto alto. Incrível como o cérebro apreende tanta coisa em poucos segundos.
Tratei rapidamente de oferecer ajuda. “Machucou-se?” perguntei.
“Acho que tive apenas uma leve torsão”, “prendi o salto nessa droga de buraco da calçada” disse ela apoiando-se em meu braço para levantar-se. “Felizmente o salto não quebrou” murmurou, conferindo o estado do calçado agora em suas mãos. “As ruas dessa cidade não favorecem a elegância” comentei com um meio sorriso.
Ela me olhou nos olhos, sorriu, pediu desculpas por ter esbarrado em mim e seguiu hesitante seu caminho.
Passei a manhã toda em uma daquelas reuniões massantes, e sonolentas em que o fio condutor era o que tinha sido feito na cidade durante os primeiros 180 dias da nova gestão municipal. As políticas desta ou daquela natureza, projetos disto ou daquilo que impactaram em questões sociais de extrema importância e todo aquele linguajar próprio das entidades governamentais.
Em dado momento, pensando na loura estatelada na chão, quase levantei a mão para sugerir que nos próximos seis meses a gestão pudesse ter um atenção maior às calçadas da cidade ou as mulheres deixariam de usar salto alto, mas, achei mais seguro permanecer calado.
Dei graças quando o meio dia chegou. Saí rapidamente para o almoço. À tarde iria ao dentista e ainda tinha algumas coisas a resolver no escritório.
Cheguei pelo menos meia hora adiantado ao consultório. Fiz o “chek in” na recepção e fui para a sala de espera. Peguei uma daquelas revistas de fofocas, e sem muito entusiasmo comecei a folheá-la. Na seção de culinária havia uma receita de frango do KFC, Kentucky Fried Chicken, que eu hei de fazer ainda nesta vida. Absorto na leitura dos ingredientes da receita não percebi a pessoa que entrou na sala de espera. Ouvi um “olá” e quando ergui os olhos da revista, para a minha surpresa era a loura do esbarrão. “Olá” respondi e após alguns segundos emendei “como vai o pè?” como que para manter a conversação em linha. “como eu disse foi só uma leve torsão” respondeu ela me olhando curiosa.
“O que está lendo?”
“em uma revista de fofocas ? Acho que a informação mais coerente, uma receita de frango crocante do KFC”
“Então além de ser abalroado por mulheres que caem de seus saltos pelas ruas da cidade você também gosta de culinária” disse ela sorrindo.
“Curioso é que no momento em que você esbarrou em mim eu pensava em como as mulheres ficam elegantes de salto”. “jamais pensei no perigo por traz de algo tão sedutor” sorri.
“É bizarro que um salto preso em um buraco nos tenha aproximado não acha?” disse ela ainda me olhando curiosa.
“E também que tenhamos nos encontrado uma segunda vez no dia” comentei.
Ela riu, ergueu a cabeça um pouco como que para ouvir melhor a música que saía do alto falante da sala de espera. “Can´t take my eyes off you” eu disse. “Gloria Gaynor” “tem outras versões, mas acho que esta é a melhor”
“É uma das minhas músicas preferidas” ela disse.
“É tema do filme Teoria da Conspiração” “já viu? Com Mel Gibson e a Julia Roberts”
“Eu recomendo, é bacana” falei.
“culinária, filmes, música, que outras surpresas você reserva?” sussurou ela com um sorriso nos lábios.
Devolvi o sorriso meio sem graça. Meu nome foi chamado. Fechei a revista e me dirigi à consulta. Só após estar estirado na cadeira do dentista ouvindo o zumbido da broca é que me dei conta de que nem sequer perguntei o nome dela.
Uma hora depois, quando saí da sala do dentista ela já não estava mais lá.
No outono, assim como no inverno, os dias escurecem mais cedo. Eram seis da tarde e as luzes dos postes já estavam acesas. Pensei em ir direto para casa, mas, ainda tinha um compromisso, comprar um livro de presente para um amigo que iria fazer aniversário no sábado e já que eu estava próximo ao Shopping Muller pensei em dar uma passada na Saraiva.
Antes mesmo de entrar na loja, através do vidro, eu a vi vasculhando a estante de dvd´s. Ela não percebeu quando me aproximei. Estava lendo a sinopse do filme a Teoria da Conspiração. “Vejo que seguiu minha recomendação” eu disse.
Ela se sobressaltou e disse “Ahh não! Agora bizarro é a palavra oficial para esta série de encontros”
“Talvez tudo seja puramente coincidência”, “Diz o dicionário que coincidência é um substantivo feminino utilizado para referir-se a acontecimentos ao acaso, mas, que parecem trazer alguma relação entre si”. Comentei.
“Ou talvez, essa relação realmente exista e tudo aconteceu porque deveria acontecer”, “Você acredita no destino?” perguntei sorrindo
“Eu mesmo até cinco minutos atrás não acreditava, agora começo a repensar esta questão”. Eu disse.
“Qual é o seu nome?” perguntei.
“Julia”, “O seu?”
“Marcos”
“Julia, eu estou morrendo de fome e há um Burger King na praça de alimentação, e até onde eu sei, é o único lugar onde eu posso encher novamente o copo de refrigerante”. “Me acompanha?”
“Bem, considerando a sua teoria do destino, é muito provável que não iríamos ficar apenas nestes três encontros, então sim! Vamos descobrir porque o universo nos quer juntos...”
Ofereci meu braço e disse “um apoio caso o seu salto encontre algum obstáculo no belo piso deste shopping”
Ela sorriu e assim seguimos rindo e conversando animadamente rumo às escadas rolantes e ao andar da praça de alimentação...