A própria Raquel, que ensinara os serviços de camareira a Nathalie . Também ensinara como se comportar na entrevista para uma vaga de aeromoça:

Minha filha, os bons modos impressionam: o jeito de ficar em  pé, indica a linha de educação, a personalidade e o estado de espírito do comissário de voo. Tudo deve ser feito da  maneira mais natural possível, porque a fala ou os gestos excessivamente artificiais, causam fadiga a quem ouve ou vê.

 O olhar firme cativa e transmite segurança. Não se deve olhar demasiadamente para o chão, nem para o alto. Mantenha um olhar horizontal, nivelando-se social e culturalmente com o interlocutor ou com a plateia. O olhar para baixo indica submissão e pode ser entendido como baixa estima. Nunca caminhe apressada, nem arrastando os calçados. O andar apressado revela nervosismo, e o arrastar de chinelo, preguiça e apatia.

O coração modifica a face e mostra o estado de espírito em que a pessoa se encontra, de modo que, em situações de normalidade, a expressão do rosto deve conter um sorriso suave e franco. Já em emergência, convém manter a tranquilidade. Nem sorriso fabricado, nem lágrimas. Tudo precisa estar sob medida, nem mais, nem menos.


 Muita coisa na vida depende de ensaio: ensaiar o colóquio amoroso que começa na sala e termina na alcova. Ensaiar é exercitar habilidades adormecidas para que despertem, fiquem atentas ao primeiro sopro de amor.

Nathalie  precisava ensaiar...

 Naquele dia, Fernão chegou querendo tudo, como se não quisesse nada, e se sentou ao lado dela. Quis saber como se saíra nos ensaios para a entrevista a uma vaga de aeromoça.

—Anotei tudo que tua mãe me ensinou. Quer que represente?
— Sim. Farei parte da encenação. Serei o empresário.

Ela caminhou pela sala. Parava, caminhava outra vez e dava avisos.

Parabéns, disse ele.

 Nathalie  deixou escapar um sorriso que Fernão aparou com os lábios. Nem é preciso dizer que ela agora estava no avião repassando a fita de sua vida. Recordações desastrosas, lembranças dolorosas de um casamento fracassado. 

Fernão precisava tomar, diariamente, um comprimido de  antipsicótico, para controlar seus impulsos agressivos. Hemor, não era diferente. Não raras vezes, acometido por distúrbios psicológicos entrava no Musée de l´Orangerie, e xingava Claude Monet. Dizia que Monet saia da tela,  e lhe apontava  uma arma para arrancar informações sobre o cálice usado por Jesus na última ceia.

Pobre Hemor! Sua mente em desalinho era controlada por uma mancheia diária de fármaco, que era ao mesmo tempo, remédio e veneno.  Ele fantasiava  seus melhores momentos de lucidez, com sorrisos involuntários, falando  de aventuras amorosa e posse de  veículos importados, de marca famosa, sem tê-los. Dizia que o mundo tinha inveja dele porque era o melhor piloto da navegação aérea. Mas... os fatos não confirmavam a superavaliação que fazia de si mesmo. Não apresentara os exames neurológicos exigido, recentemente, pela companhia. E  a empresa lhe dera aviso-prévio. Aquela seria sua última viagem  como comandante de um  Airbus em voo internacional.


Absorta em seus pensamentos, Nathalie  esqueceu a turbulência pela qual passava a aeronave em que viajava.

Levantou-se segurando no bagageiro, aberto e  destroçado.  Desviou de um corpo estendido no chão. Não exatamente estendido, dobrado, quase esmagado.

O homem tinha um ferimento do lado direito e a cabeça perfurada por estilhaços pontiagudos como espinhos.

Leu novamente o poema que Fernão escrevera no verso do bilhete que ela deixara sobre o criado mudo, quando saíra de casa, há quase um ano, decidida a não mais voltar:

 
Olho o mesmo horizonte
Vejo nuvens, vejo montes
E um navio em alto mar
 
São meus olhos navegando
Meu coração sondando
Procurando, procurando...
 
Mas sem querer encontrar
Para que não encontrando
Continue a procurar.
 
 Revisitou cenários do Rio de Janeiro, guardados na memória de seu tempo de criança: o espetáculo da natureza de outrora,  fora interrompido por mãos humanas: obras da construção civil, tapumes na calçada, escombros, para que ali se construíssem um supermercado. Tudo novo na rua Almirante Cochrane,  mas a casa de Raquel permanecia como antes.

 A lembrança do primeiro jantar com Fernão se lhe ressaltava na mente:   regras de etiquetas que prendem como rendilha cabrestante, e arrastam destros e canhotos numa mesma direção. Tolices... padrões que se não cumpridos, causam vexames.  Pobre Nathalie , não sabia como se comportar em restaurante de rico. 

— Não como lesma!

Raquel  tomou uma atitude de maternal condescendência.
— Também não como lesmas minha filha.
— Escargot não é lesma — interfere Fernão — Lesma não tem concha. Scargot tem. A tradução do designativo francês escargot é caracol: molusco comestível. 

— Não somos obrigados a gostar de pratos exóticos só porque uma minoria de privilegiados  diz que é de bom gosto comer escargot em Paris?

— Não estamos em Paris, acudiu Fernão que não gostava das tardes frias de Paris. 
 

— Acho que sou um escargot que perdeu a concha, disse Nathalie , esboçando um sorriso maroto.

Raquel paga a conta. É hora de voltar pra casa, disse ela.

Vai-se um dia e vem outro, enfim, dezenas de dias chegam e se vão.

Sete anos casada com Fernão, viveu Nathalie . E sofreu agruras de milanos. Juliano, o filho esperado, não veio. Nem Mariana, sequer gerada foi. Se o boi não carreia o milho, o milho  não alimenta o boi.


— Não dá para pontilhar o tempo de outra forma? Não gosto deste salto no escuro. Muita coisa acontece no lapso de  sete anos.
— Ora, Bob! Nas películas cinematográficas e telas de TV isso é possível, usando o artifício da maquiagem, para envelhecer os personagens, ainda assim, não dispensa a informação: Sete anos depois... Aqui não há outra forma, senão dizer se não conseguir narrar. Não sei como pontilhar o tempo de outro modo, ademais, só descrevo este fato para ser fiel ao desempenho de meu mandato. Mas, dói-me muito falar do amor que outra mulher sentiu por Fernão. O salto foi brusco, desculpe-me.
— Crie um ‘gancho’...
— Vou tentar uma palavra de mudança, mas pode ser que não dê o mesmo efeito.
Foi assim:
— Fazia sete anos que Fernão não dava manutenção em suas réplicas de peças da  marinha e aviação."Não, assim não está bom.." E ela mesma corrigiu:

Estava tudo escrito no diário.
Com o diário de Nathalie  dá  para escreve um livro, mais épico que romântico...  "Naquele dia, Fernão levantou cedo; varreu o enorme quarto que ele chamava de estaleiro, trocou algumas cordas da réplica do Sutton Hoo; poliu a gaivota que descansava no capelo; e retirou teias de aranha  do 14 Bis. Abasteceu o tanque da pequena aeronave, acionou os comandos, mas máquina não decolou. E ele quebrou quase todas as suas miniaturas, inclusive o Trovão Azul, alegando que o pai morrera depois de inalar dióxido de carbono liberado pelo motor da aeronave."

Você é meu pai? Perguntava ele a qualquer transeunte com o qual se deparasse na rua. Se a resposta fosse positiva, ele indagava nervoso: E cadê minha mãe? Se a resposta fosse morreu. Ele se transformava no incrível Hulk.

 --- Disseste que Yuri, pai de Fernão fora dado como desaparecido.
--- Desaparecido ou morto, que diferença faz? Aquele dado por desaparecido, na maioria das vezes, é um morto cujo cadáver nunca foi encontrado.


Yuri Pode ter morrido por causa do gás carbônico. Não é prudente funcionar motores  a combustão em ambiente fechado. Ainda que sejam apenas de miniaturas que voam.

— O capelo em volta do pescoço, foi a causa mortis?
—  Ora, nunca se sabe: o boneco piloto do 14BIS não estava na cabine de comando. E o Trovão Azul totalmente destroçado.
Não se sabe com certeza, se Yuri morreu em acidente aéreo,  marítimo,  ou teve morte natural. "De que morreu um desaparecido?" Raquel morreu de infarto, e Yuri teve morte presumível. Esta é a verdade.


Somos uma vela acesa no meio da tempestade. Vai-se um dia e vem outro, e passam, velozmente, no calendário das horas. A aurora envelhecida, se cansa. Já não há mais esperança: a contagem da vida é regressiva.

***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."