Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis.(Ferreira Gullar)
O apartamento estava em total desordem: copos na pia, panelas sujas sobre o fogão e roupas jogadas no sofá. Sem demora, Fernão desconectou o pen drive de seu computar e enfiou-o no bolso. ‘Se quiseres, já podemos ir, ou vais ficar para lavar a louça?’ Disse com ar de riso, estendendo-lhe a mão.
Abriu a porta e saíram devagar. Na escadaria, deu um beijo no rosto dela, que parecia mais uma caricia de pai, um amor diferente, um amor que inspira confiança.
O Notebook estava no carro, seria aquele para o qual comprara uma placa-mãe? Ravenala não entendeu por que Fernão chamou o pen drive de chaveiro. Segurou a curiosidade, nada perguntou. Talvez ele não quisesse interferir na área profissional dela. Andaram pouco, sem qualquer direção, praticamente calados, até que o rapaz irrompeu o silêncio:
— Posso levá-la em casa? Tenho um trabalho a fazer no escritório, com certa urgência!
— Pode sim, pode sim...
Poucos dias depois, outra vez ele parou no apartamento. Mas não criou a desculpa de pegar um pen drive, simplesmente, disse:
— Se quiseres me acompanhar, garanto que não tem prato sujo na pia.
— Subo. Espero que os copos também estejam limpos.
Era visível o nervosismo dele. Não havia roupas espalhadas no chão. Nada sujo na pia. Tudo limpo e arrumado revelava a obra de uma boa diarista. Pratarias, talheres, cristais e vinhos sobre a mesa, lembravam a Confeitaria Colombo, guardadas as proporções de espaço e posses. Ravenala vasculhava com o olhar tudo que suas vistas alcançavam. Precisava explorar a casa, sem tocar em nada, enquanto Fernão tomava banho. A sós, ele criava frases, fazia e desfazia abordagens dirigidas ao espelho, acompanhando e refazendo os movimentos para corrigir gestos labiais e frases. Queria ser autêntico ao sair do banho. Temia assustá-la se aparecesse de roupão... Talvez uma bermuda, uma roupa caseira mais leve?...
— Demorei?
— Nem tanto! Agora preciso ir ao banheiro – disse ela.
A banheira de hidromassagem estava coberta de pétalas vermelhas. Relaxou. E quando saiu, Ravenala disse sorridente.
— Gostei da surpresa. Não sabia da banheira com rosas.
A garrafa de vinho que Fernão abriu, não chegava a ser um rare wines. Mas, tinha nome estrangeiro e a indicação de vinte anos passados. Ela não conhecia a marca Groupie. Nem tinha certeza da tradução. Lembrou-se de já ter visto aquela inscrição nas camisetas que Ramayana usava por baixo do uniforme, como um pacto com seus ídolos. Mas, vinho com aquele nome, nunca tinha visto. Talvez Fernão tivesse mandado rotular por encomenda a algum vinhateiro e naquele dia... Naquele dia ela bebeu do poço de Jacó, e deu de sua água ao samaritano. Por certo, se nascera fadada a virgem vestal, havia cumprido a missão: viveu trinta anos de castidade e, mesmo correndo o risco de ser atirada do monte Capitolino, tinha agora um homem para chamar de seu. No entanto, e apesar de tanto, eles fizeram um pacto: nenhum investigaria a vida do outro. Deveriam continuar do mesmo modo que se conheceram, e assim, evitariam desavenças. As discussões faziam muito mal, por isso, ele mesmo propusera o pacto de vida a dois com suas individualidades preservadas: cada um morar em sua própria casa.
Isso não é bem visto pela Igreja.
O reencontro com frei Gaspar, gerou grande vexame. Ravenala apresentou Fernão como marido, para não ter que dar maiores explicações. Sabia o que pensava a Igreja Católica sobre a união de um homem com uma mulher, sem o sacramento do matrimônio.
— Este é meu marido.
— Muito bem minha filha! Por que não escolheu a Basílica Santa Terezinha. Faria teu casamento com todo o prazer. Foi na pia de nossa igreja que foste batizada. Sabia disso?
— A mãe me falou algumas vezes sobre.
— Não apareceram mais na Basílica?...
— É verdade! A mamãe faleceu e nos mudamos para o Aterro do Flamengo.
— Meus sentimentos pela morte de sua mãe.
Ravenala fingiu esquecer a pergunta sobre o casamento dela na Igreja Católica; e o Frei, não insistiu nem insinuou aguardar resposta.
Despediram-se do padre e saíram.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."