Porque amar é se aventurar.

Era uma manhã de sol de emocionar até mesmo para as corujas. Aqui pelo Nordeste, modéstia parte, é geralmente assim, o sol sempre reina absoluto. Sair de casa às 07 horas, meus irmãos menores ainda dormiam. As aulas só iniciavam às 08 horas, mas não queria perder a oportunidade de marcar minha cadeira próxima à de Júlia. Apesar dos meus já 17 anos, nunca havia gostado tanto de uma garota quanto gostava da Júlia.

Quanto a mim, sou o Fernando, moro com minha mãe e mais dois irmãos em uma cidade grande. Aliás, não posso dizer que moramos nessa cidade, pois não me sinto parte dela. Infelizmente ou felizmente, dependendo da perceptiva, nossa casinha fica no alto do morro e para chegar lá, são mais de 75 degraus espalhados por umas cinco escadas estreita e escorregadia. Os acidentes são constantes, sempre tem alguém rolando escada abaixo. Não me sinto parte dessa cidade grande ou os habitantes dela que não me querem como integrantes desse universo maior.

Do alto da minha casinha observo a vida ocorrendo lá em baixo. Trânsito horrível, pessoas correndo, ultrapassagens proibidas, pedestres sempre apressados, atravessando a avenida fora da faixa. O resultado é exatamente esse que você está imaginando, muitos acidentes, atropelamentos, assaltos e desordem. O poder público não se faz presente por essas bandas. Sentado no último degrau da escada que dá acesso a minha casa, fico a pensar o quanto os seres humanos precisam aprender com as formigas. Apesar da minha frágil formação escolar, às vezes me pego pensando e refletindo sobre algumas questões importantes. Uma delas é entender o porquê de umas poucas pessoas terem tantos bens materiais, enquanto outras, a maioria da população, não tem sequer um lugar confortável para viver com a família.

Não que eu amasse viver naquela situação, mas a noite para nós que vivermos abandonados e esquecidos pelas autoridades, era uma dádiva divina. Do alto do morro, era possível contemplar a beleza expressa no céu. Acima das luzes que iluminam a vida das pessoas que transitam e vivem no conforto dos lares e dos carros de luxo, era possível ter uma visão da dimensão à qual todos nós estamos envolvidos, mas que só é permitido ver essa grandeza quem tem a liberdade de observar o infinito à noite. As luzes da cidade e a prepotência das pessoas impendem que a vida se apresente como ela de fato é. Apesar do perigo, às vezes eu gostava de morar naquele lugar incomum.

Voltando à Júlia, por certo ela gostava de ser amada por mim, mesmo que isso ainda não tinha sido claramente revelado para ela. Afinal, cuidados e carinhos, qualquer um gosta de receber. Mas a vida não é tão retilínea quanto nós imaginamos. Já sem me suportar tanto amor preso dentro do meu pequeno coração, decidir que era hora de conversar com a Júlia e falar todo o amor que por ela eu cultivava há tempos. Então, naquela manhã de sol lindo, no intervalo da aula, chamei Júlia para merendarmos, algo que fazíamos constantemente. Sem perder tempo, falei do meu amor por ela. Mas acho que não foi uma boa ideia. Ela apenas respondeu que não poderia namorar comigo, pelo menos por enquanto. Terminamos de merendar, voltamos para a sala de aula, agora menos ansioso e mais leve, porém, meio triste com a resposta que recebera da amada.

Continuamos nos falando, ainda mais próximos agora. Até um selinho já havia ganhado da garota, sinal de que alguma chance de ser correspondido ainda havia. Quanto à vida dela, pouco eu sabia. Apenas a certeza de que ela morava com a mãe e o padrasto. Nossa chance de conversamos era apenas no intervalo das aulas, pois morávamos em locais diferentes e longe um do outro. O que nos aproximava mais eram as redes sociais. Claro, eu tinha todos os contatos dela. Em conversa online através do whatsapp, ela confirmou minhas expectativas, mas não era o que eu gostaria de ouvir. Disse que gostava muito de mim, que amava a forma como eu a tratava, que ninguém nunca havia sido tão carinhoso com ela como eu fora. Porém, eu corria sério risco de vida se continuasse a insistir nessa paixão. Não me disse realmente o que estava acontecendo, apenas pedia que eu me afastasse urgente dela, pois algo ruim poderia acontecer comigo e com ela também.

Depois dessa conversa, comecei a refletir mais sobre os comportamentos da Júlia na escola. Sempre sozinha, calada, olhar distante e triste. Eram características que não combinavam com a beleza e juventude de uma adolescente aparentemente bem física e psicologicamente. Decidir então dá um tempo nas minhas investidas para tentar entender qual era o problema que impedia nosso amor de frutificar.

Não precisou aguardar muito. Quando eu voltava da escola, um dia de muita chuva na Primeira Capital do Brasil, fui parado por um homem mal encarado, um olhar ameaçador e logo me perguntou: - você é o Fernando? Um pouco assustado, confirmei que sim. Ele continuou: - então você conhece a Júlia? Confirmei que sim. O homem ainda mais nervoso, puxou uma faca enorme, pegou-me pela gola da camisa e esbravejou: eu sou o padrasto da Júlia, sei de seu amorico por ela, da sua insistência e das suas intenções. Vou te falar uma coisa garoto, se não quiser morrer, se não quiser que sua mãezinha e seus irmãos morram queimados, se afaste logo daquela menina, pois ela já tem dono. Cuidei dela desde pequena, continuo cuidando, ela não precisa de um frangote desse para nada. Tudo que ela precisa tem em casa, inclusive um homem.

A partir desse dia, não vi mais a Júlia, por certo, aquele homem horrível deve ter a proibido de frequentar a escola. Aliás, deve ter proibido de viver também. Mesmo tendo apenas 17anos, já entendo perfeitamente como o sistema funciona aqui no Brasil. Apesar de amar demais aquela que tornava a escola mais atrativa para mim, não poderia colocar a minha família em risco. Ainda pensei em denunciar aquela cafajeste, mas também sei que ele poderia mandar alguém atrás de mim. Então, decidir que era melhor sufocar aquele sentimento e continuar vivo e protegendo minha a família. Um dia, quem sabe, posso me organizar e arquitetar uma fuga para outro lugar com a Júlia, mas levando minha mãe e meus irmãos. Por enquanto, para não sermos descobertos, falamo-nos através das redes sociais com nomes diferentes, utilizando códigos que só os apaixonados de verdade entendem. Inclusive, Orientei Júlia a filmar ou gravar os comportamentos do padrasto para uma possível denúncia. Sei dos riscos que corremos, mas o amor vale apena.

Manoel R
Enviado por Manoel R em 31/03/2018
Reeditado em 31/03/2018
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