Helena
Seis horas da manhã. O despertador toca. Nada do piiipiiipiii dos smartphones. Em vez disso, o interminável triiim dos relógios despertadores. Aqueles parecidos com grandes cebolas que os avós colocavam no criado mudo.
Uma olhada pela janela para perceber que o clima não é bom. O vento forte faz bailar o pessegueiro. Os galhos da palmeira movem-se tanto que parecem os tentáculos de uma lula imensa, tentando desesperadamente apanhar algo pelo ar. Vai ser uma droga de um dia frio e macambúzio.
Água no fogo para o café. Enquanto isso uma rápida passada pelo chuveiro que demora a esquentar. Entra encolhendo-se debaixo d´água ainda fria. Sabonete na mão. Esfrega-se. Lava o cabelo as partes íntimas do corpo, agora um pouco de xampu, enxagua-se e desliza rapidamente para quarto.
Faz careta ao ver-se nu no espelho do guarda-roupa. Pernas peludas, barriga saliente, não deu tempo de barbear-se, era a visão do horror. Muito crítico com a aparência mas nenhum esforço em melhorar.
Veste-se. Calça amarrotada, camisa amassada. Sem tempo para passar roupa. Se fosse um sábado de Aleluia correria o risco de ser malhado como Judas e dependurado em um poste.
Corre para a cozinha onde a água borbulha na chaleira. O aroma saboroso do café subindo pelas narinas. Bebida sensível, pensa. Tem que ser na medida certa. Muito pó fica horrível, pouco, vira uma água de chão. Sopra a xícara impacientemente, bebe um gole queima a boca, pragueja. Olha para o relógio, não dá tempo, tem que sair correndo.
Anda com pressa a distância da sua casa até o ponto de ônibus. Faz em sete minutos o que normalmente faria em dez. Dirige-se ao fim da fila. Sente uns pingos no rosto vindos do céu escuro. O ônibus chega. Impossível sentar, os bancos estão sujos de pó de saibro. Alguns afastam a poeira com lenços ou com a mão mesmo. Outros resignam-se a ficar em pé.
Um lance de olhos aqui outro ali para ver se aquela morena, alta, de olhos verdes e cabelos cacheados esta no ônibus, mas nada. Que decepção.
Já conhece o trajeto que não tem nada de novo, abre o livro e mergulha na leitura. Quando percebe já esta no terminal. Desce, continua a ler enquanto aguarda a nova conexão.
Vinte minutos depois esta no escritório, no décimo andar de um prédio elegante no Alto da Glória onde tudo é igual desde os móveis até as pessoas. Sua única diferença é a roupa amarrotada pela qual leva uma reprimenda do chefe gordo e suarento.
Sua função é fazer cobrança, ligar para os inadimplentes, os sem dinheiro para saudar suas dívidas. Alguns são humildes, reconhecem a sua condição de devedor e anseiam por regularizar a situação, outros porém são mal educados e grosseiros. Gritam, esperneiam, mandam a merda.
A manhã vai passando. Três, quatro, cinco ligações e uma media de trinta a quarenta minutos para fechar um acordo. Explicações intermináveis sobre saldo devedor, juros, acréscimos, simulações em cinco, sete, dez vezes.
O meio dia enfim chega, come a marmita rapidamente, arroz, feijão e uma vina picada. Não teve tempo para a feira, portanto, sem salada. Toma água em vez de suco ou refrigerante e sai em desabalada carreira. Precisa de ar. Precisa respirar o exterior. Ver a vida lá fora.
Vai para a praça. O céu continua escuro, mas, a chuva não tem pressa em cair. Senta-se no banco. Observa o vento fustigando as árvores e sonha com dias melhores. Com uma vida cheia de acontecimentos marcantes. Um emprego descente, que trouxesse alguma dignidade à sua vida profissional. Um bom carro. Uma mulher bonita com pernas longas e bem torneadas, seios pontudos e curvas bem delineadas.
Mas, até então, a vida lhe tem reservado das cores, apenas o cinza, do riso apenas um entreabrir de lábios, da felicidade uma cópia mal feita com retalhos de momentos que sequer poderia chamar de felizes.
Perdido nesse devaneio não percebeu a garota na outra ponta do banco. Cabelos longos e lisos, negros como a noite, se espalhavam com o vento e voltavam a ajeitar-se. Pele muito clara, leitosa. Mãos delicadas, dedos longos e unhas bem feitas. Uma saia curta rodada na altura do joelho revelavam pernas brancas e delgadas. Olhou-o timidamente e voltou-se para algo que estava em suas mãos, um embrulho em guardanapo. Um pedaço de bolo.
Em seus pensamentos pôs a beldade da outra ponta do banco de lado e voltou a olhar entediado o transito da avenida no outro extremo da praça quando sentiu um toque delicado no ombro. "Você quer um pedaço de bolo?" "É de fubá!" "Minha mãe quem fez". Disse a moça tímidamente.
Surpreso, ficou sem saber o que dizer. Por fim disse sim, obrigado e pegou o bolo.
"Eu trabalho lá do outro lado da praça, na avenida". Disse ela. "Vê aquele sobrado colonial pintado de salmão?" "É uma firma de advogados associados, Kaminski & Martinez." "Sou secretaria de um deles, minha mesa fica de frente para a praça." "Faz três meses que vejo você aqui nesta praça todos os dias neste mesmo horário." "Sempre na mesma ponta do banco. Com o olhar triste, perdido no tráfego."
O comentário estranho deixou-o desconfortável. Mexeu-se incomodado. Como que para desconversar disse, "trabalho no edifício de vidros azuis aqui atrás." "Em uma firma de cobrança."
Houve um breve silêncio e ela sentou-se a seu lado e retomou a conversa. "Sou de Rebouças ela disse. Conhece?"
"De passagem e de ouvir falar."
Passaram cerca de meia hora conversando como se já se conhecessem há muito tempo. Como se fossem velhos amigos.
Contou-a das vezes em que ia visitar a avó em Rio Azul, uma cidadezinha além de Irati e Rebouças. Comentou das igrejinhas com cúpula de cebola que enchiam a paisagem da região sudeste do estado do Paraná. Parecia um pedaço da Ucrânia encravado no sul do Brasil.
Contou dos natais da família Procek. As ceias natalinas de mesa farta. O borsch, os perohês deliciosos da avó Verônica. Holupti, o charuto de repolho. Kutiá, o maravilhoso doce de grãos de trigo.
A missa cantada em ucraniano na igreja da colônia com suas belas cúpulas de prata. Deus conosco (з нами бог) escrito sobre a cruz na entrada da paróquia com o curioso e misterioso alfabeto cirílico.
Falou sobre o tom dourado nos cabelos das garotas de olhos azuis da cor do céu. Dos lenços nas cabeças das mulheres mais velhas.
Em pouco tempo de conversa viajou com aquela estranha nessa profusão de cores, sabores e gentes que a vida levou para outros cantos. Tios e tias que já se foram. Partiram desse mundo para nunca mais voltar. Por fim a avó... Saudades de tudo aquilo.
Olhou sobressaltado para o relógio era o momento de voltar para as últimas quatro longas horas de telefonemas do dia. Agradeceu o bolo, a conversa, e foi tomando o rumo do prédio de vidros azuis.
Olhou para traz e a moça estava em pé, ao lado do banco observando-o partir. "Meu nome é Helena, qual é o seu?" gritou ela. "José." Respondeu com as mãos ladeando a boca para amplificar o som de sua voz. "Amanhã vou trazer bolo de chocolate!" Disse ela com um sorriso. "você gosta?" "É o meu preferido!" gritou ele, também sorrindo.
Das escadarias do prédio olhou novamente para traz e ela continuava lá, em pé, observando-o. Quem a visse à distância, diria que era a estátua de uma musa, imóvel ao lado do banco da praça, o vento lambendo seus cabelos, agitando os galhos das árvores, varrendo as folhas pelo chão.
Durante as semanas que se seguiram tudo se fez diferente. As cores dos dias foram voltando. A ansiedade por cada novo amanhecer. Havia poesia no tempo mal humorado da cidade. Um ânimo diferente para enfrentar a difícil tarefa de cobrar às pessoas.
Até mesmo as horas passadas na mesma ponta do banco a olhar o tráfego foram cedendo lugar a pequenos passeios no entorno, temperados com boa conversa, sorrisos, risadas... Contornos de mudança foram se desenhando à sua frente e o nome de tudo isso era Helena... era amor...