O moço

Lembro como se fosse hoje. A rotina pacata da fazenda nunca ficou tão agitada em um único dia. Era uma contagem regressiva das horas que faltavam para “o moço” chegar.

Era tia Ana correndo com bandejas na mão, olhando mais para o relógio do que para o fogão, aprontando bolo, aprontando cuscuz, aprontando um tanto de comida. Do que o moço gostava? Mamãe não sabia! Comida de tudo ou era desse tipo fresco que separava a verdura no prato? Mamãe não via o moço desde pequeno, não sabia dizer.

Tia Ana foi de bolo de chocolate, cuscuz com leite, um cafezinho... Não tinha erro. Se o moço não gostasse daquilo, ia ter umas férias ruins lá em casa, porque se tinha uma coisa que tia Ana não gostava era de gente que não sabia comer. Podia ser homem, mulher, velho, criança... Quisesse conquistar o coração da velha, era comer de um tudo.

Apesar da ansiedade da cozinheira em deixar tudo pronto, limpo e no lugar, o tempo deu que sobrou. A chegada do moço atrasou e quando ele entrou pela porta da frente do casarão, metade da casa já tinha era desistido de esperar. Todo mundo, por falta de opção, sentindo o calor que tomava conta da casa no meio da tarde.

Eu esparramada no chão, com a cabeça no que poderia estar fazendo e com quem poderia estar brincando, chateada por ter que esperar o visitante que eu não conhecia, tia Ana descansando num canto do sofá, tio Aderaldo dando umas espanadas desnecessárias na estante dos livros, papai lendo um jornal na poltrona de sempre e mamãe conferindo se estava tudo milimetricamente no lugar. O moço era da cidade grande, sabe como é. Ia reparar, ia ver.

Até o Tobias, nosso vira lata que tinha meus mesmos 11 anos, estava consumido pelo tédio da espera, deitado do meu lado, esperando que eu guiasse nossa programação de mais um dia, como eu geralmente fazia. De vez em quando, ele me dava uma olhada cheia de esperança, como se perguntasse: Rio? Pés de manga? Passeio entre as vacas, corrida até a porteira? O que vai ser? Eu topo tudo!

Pobre Tobias, eu queria tanto quanto ele estar longe dali me refrescando com a água ou com o vento, escalando, nadando, aventurando... Mas tinha que esperar o moço, o primo que eu nem conhecia, que ia chegar a qualquer momento – desde duas horas antes – e reparar em tudo.

***

Uma vez que ele chegou, eu não entendia o que o moço tinha de tão especial. É certo que ele comia tudo, até coisas que eu não colocava na boca nem com muita insistência da mamãe ou da tia Ana, mas fora isso não havia realmente nada que o fizesse se destacar, estivesse sozinho ou no meio de todos nós.

Ele chegou com a mãe, minha tia Andreia, que na verdade era sobrinha da minha mãe. Comia de tudo sim, não tinha frescura com comida nenhuma, só comia pouco, muito pouco. Eu quase ri da confusão no rosto da tia Ana, que não sabia se gostava ou não do menino. Com o tempo, ela ia gostar muito, ia sentir a falta dele quando fosse embora e ia se esconder no quarto pra chorar sozinha quando a notícia chegasse.

O moço era quieto, falou pouco, tia Andreia que falou por ele a maior parte do tempo, e passou a maior parte do tempo olhando para os próprios pés e as próprias mãos, que ficavam apertando uma outra com ansiedade. Nas poucas vezes em que o olhar dele cruzou com o de alguém, afastou rapidamente. Mas em nenhuma dessas vezes ele olhou pra mim, o que me deixou bastante irritada. Se era como se eu não tivesse ali, qual era o ponto de ter interrompido meus próprios planos para estar?

- Vocês desculpem, mas o Nandinho vai dormir um pouco agora. Tá tão cansado da viagem e, ainda mais na condição dele... – a frase da Tia Andreia ficou flutuando no ar, sem final, sem conclusão, mas era como se todo mundo soubesse o que ela deixou de falar. Todo mundo com uma expressão sombria e triste no rosto por dois segundos, até o próprio moço, que abaixou ainda mais a cabeça, quase enterrando o queixo no pescoço, se isso fosse possível.

Eu já havia me acostumado a não estar por dentro de alguns assuntos. “Não é coisa pra criança saber”, alguém diria se eu tentasse perguntar – quase sempre a tia Ana, antes mesmo da mamãe – mesmo que eu tentasse argumentar que, com 12 anos, eu já não era tão criança quanto queriam me fazer parecer.

- Minhas regras até já vieram...

Usei esse argumento uma vez, e apenas essa. Minha mãe ficou com o rosto vermelho, tia Ana me fuzilou com o olhar e papai começou a tossir enquanto saía pela porta da cozinha, deixando o cuscuz quase intocado no prato. Foi quando eu aprendi que, não importava o que dissesse, havia coisas que eu apenas não ia saber, a não ser que eu me tornasse muito boa em escutar a conversa dos outros, o que eu estava me tornando.

- Depois você mostra a fazenda pro Nandinho, Elisa? – Tia Andreia perguntou sorrindo, falando comigo pela primeira vez desde que chegou. Nandinho não olhou pra mim, continuou fitando as mãos, já vermelhas de tanto apertar uma a outra.

Assenti com a cabeça, me forçando a sorrir, para disfarçar o mau humor. Eu não queria mais estar ali e, naquele momento, não queria me compromete a mostrar nada para um moço que eu nem conhecia. A tia Andreia eu conhecia; era minha madrinha e visitava às vezes, mandava presentes nos aniversários e no Natal, mas o filho dela... Era um estranho de cabelos muito pretos e pele muito branca, magro e alto para os 16 anos que diziam que ele tinha, de olhos grandes e extremamente azuis. E nada mais que isso, não ali, não pra mim...

***

Para minha sorte, eu não tive que cumprir a promessa. Nandinho estava tão interessado em conhecer a fazenda ou participar das minhas diversões quanto eu estava em mostrar qualquer coisa para ele.

Nos dois ou três primeiros dias, minha mãe até mesmo disse que eu não incomodasse, ele precisava descansar. Eu sabia que tinha alguma coisa a ver com o assunto que não era de criança, mas sobre esse eu não estava interessada em saber mais.

Minha primeira impressão do moço não melhorou muito naqueles dias. Ele passava a maior parte do tempo no quarto que foi designado para ele e eu, como passava a maior parte do meu tempo do lado de fora do casarão, pouco cruzava com o visitante. Ao final da primeira semana, ele já tinha uma rotina bem estabelecida, estava sempre presente na hora das refeições, mas no restante do tempo estava no quarto.

Minha mãe ficava preocupada em estar sendo uma má anfitriã e até com a saúde dele, sobre a qual os adultos tinham o cuidado de não comentar quando eu estava por perto, mas a tia Ana era quem extravasava todo o incomodo que sentia com o jeito soturno do “menino” que, mesmo quando sentava à mesa com o restante de nós, não abria muito a boca para falar.

- Mas será possível, Dona Lúcia? O menino já é branco que nem um fantasma e não sai de dentro daquele quarto, não pega um solzinho que seja...

- Bem, ele ser muito branco não tem ligação com ele ficar o tempo inteiro no quarto... – respondeu minha mãe, com um quê de mistério na voz, antes de se ocupar em esfriar o chá da xícara que segurava nas mãos.

- Se pelo menos a menina Lis chamasse o menino pra passear um pouquinho, desenfurnar... – retrucou a velha, olhando diretamente para mim.

- Eu não acho que ele tenha qualquer vontade de passear. E fraco como ele parece, é capaz de colocar ele em cima de um cavalo e ele cair de cima no primeiro trote!

- O passeio não precisaria ser em cima de um cavalo, Elisa...

Não adiantava me defender quando elas já haviam decidido que eu seria a salvação do moço que não saía do quarto. Nem adiantava dizer que ele mesmo não havia demonstrado nenhum interesse em conhecer qualquer lugar que fosse além do alpendre do casarão, quando minha mãe e tia Ana concordavam em uma ideia, era preciso um exército de argumentos para demover as duas. E como eu era só uma...

A verdade é que talvez eu estivesse mais propensa a cumprir minha promessa a tia Andreia se toda a curiosidade colocada em cima do primo, que também nem era primo de verdade, não tivesse sido desfeita no primeiro encontro. Nem tanto pela aparência dele, mas pelo jeito tímido que fazia com que ele parecesse um verdadeiro bicho do mato, e não eu, como gostavam de apontar. A diferença é que eu era comparado a um bicho por viver no meio dos matos, subindo em árvores e comendo toda fruta pelo caminho, enquanto o moço, sem voz e sem jeito, parecia se sentir ameaçado por qualquer ser que caminhasse sobre duas pernas.

Quando eu voltei pra casa naquela tarde, depois de trocar a hora do almoço por um banho de rio, alguma coisa parecia fora do lugar. Minha mãe não estava na sala tricotando qualquer coisa, meu pai não estava na cadeira de balanço ouvindo o rádio e nem a voz da tia Ana se fazia ouvir de qualquer lugar. O que eu ouvi, no entanto, foi música, algo com o qual ninguém se importava realmente por ali, nem quando vinha do rádio, nem quando vinha de uma festa na propriedade vizinha.

Na sala, no canto onde costumava ficar um sofá que nunca era usado realmente, havia um instrumento... Um piano, como eu acabei lembrando. Já havia visto em fotos, nunca bem diante de mim. Era pequeno, sem cauda como alguém me explicaria, e marrom. Parecia velho, mas o som que saía dele era bonito. Sentado a frente do piano, deslizando as mãos sobre teclas muito brancas ou muito pretas, estava o moço, estava Nandinho.

Ele parou de tocar por um segundo quando me viu entrar, mas logo continuou a melodia que estava tocando antes. Era como se fosse outra pessoa com as mãos passeando, fazendo música. Sem pensar muito, sentei em uma cadeira um pouco próxima ao piano e Nandinho não demonstrou nenhum incômodo. Fiquei ali, com a roupa molhada ainda pingando, molhando o chão de madeira da sala, sem pensar no quanto tia Ana ralharia comigo mais tarde por isso, apenas ouvindo a canção que saía com a combinação daquelas mãos muito pálidas e magras com as teclas que pareciam ser uma extensão delas.

De onde havia vindo aquele piano que não estava ali pela manhã quando eu saí?

Quando a música ficou mais lenta, com notas mais espaçadas, e tudo parecia haver chegado ao fim, Nandinho afastou as mãos do piano e respirou fundo, como se estivesse acordando ou saindo de alguma espécie de transe, antes de se voltar para mim:

- Minha mãe esteve aqui e trouxe da cidade... Eu pedi a ela que trouxesse.

Ele sorria (sorria!) enquanto apontava para o velho piano e eu fiquei parada onde estava tentando pensar em como responder à informação que, embora eu não tivesse solicitado em voz alta, respondia à pergunta que eu havia me feito logo antes da música acabar.

- Tia Andreia esteve aqui? Consegui dizer, por fim.

- Esteve sim, mas teve que ir embora rápido. Ela ficou triste de não ver você, mas deixou um presente em cima da sua cama.

Era o maior número de palavras que eu já havia trocado com meu primo desde que ele chegara uma semana antes e, fosse pelo nossa diferença de idade ou por sermos completos estranhos um para o outro, não havia muito a ser dito por nenhuma das partes. Eu estava pronta para levantar e deixa-lo fazer em paz o que estava fazendo antes, quando ele falou novamente:

- Você gosta? De música?

- Eu não sei... – respondi honestamente.

Ele sorriu e se voltou para o piano mais uma vez, dessa vez tocando uma melodia mais lenta e visivelmente mais triste que a anterior, com seus cabelos pretos caindo sobre o rosto conforme ele balançava a cabeça de acordo com o caminho que a música tomava, completamente absorto, tomado pelo que ele mesmo tocava.

Alguns minutos depois, a música acabou novamente e ele virou a banqueta para mim. Foi só quando seu sorriso se transformou em um espanto contigo que eu notei que havia lágrimas descendo pelas minhas bochechas.

- Eu acho que você gosta dessa música... – falou timidamente.

- Acho que sim.

No restante daquela tarde, fiquei na cadeira enquanto Nandinho tocou outras músicas, algumas tristes, outras mais animadas, mas nenhuma que me tocasse como a música triste que havia me feito chorar sem perceber. Entra uma música e outra, ele me explicava o que era, de quem era e sobre o que supostamente falava, mesmo sem nenhuma palavra.

Quando perguntei sobre a música de antes, ele me falou que era de um compositor da Coreia do Norte (um lugar de onde eu nunca tinha ouvido falar) e que o título em inglês, queria dizer algo como “rio flui em você”, o que eu achei muito poético, por instinto, já que eu não entendia nada de poesia. Era a música preferida dele.

- Acho que agora é a minha também.

***

Não fui a única que notou uma mudança em Nandinho a partir da chegada do piano. No jantar daquela noite, ele conversou com a gente, principalmente comigo, sobre músicas que ele gostaria de me mostrar e outras músicas do compositor da nossa canção preferia que ele também poderia tocar para eu ouvir.

Perguntei se era difícil tocar e, com um brilho nos olhos, ele explicou que nem tanto e que até poderia me ensinar um pouco se eu estivesse interessada. Eu não sabia o porquê na hora, mas foi a vez de meus olhos brilharem enquanto eu respondia que talvez...

Tia Ana estava perplexa com a mudança, muito a ponto de nem brigar comigo pela poça de água no chão da sala e pela cadeira molhada. Minha mãe estava sem conseguir conter a alegria, explicando a meu pai como aquilo deveria ser bom para a saúde do Nandinho, como se ele não estivesse bem ali. Mas ele bem que poderia não estar, tão ocupado e concentrado que estava em me ensinar as notas e como a combinação entre elas criava tantas músicas quanto eu conseguisse imaginar.

Naquela mesma noite, depois de nos reunirmos na sala para o café e de Nandinho se desculpar comigo por estar cansado para tocar, meu pai ligou o rádio novamente. Naquela noite, ele não adormeceu ouvindo as notícias. Naquela noite, pela primeira vez desde que eu me lembrava, apenas ouvimos música em silêncio.

***

A rotina mudou depois daquele dia e não foi só a do visitante, que já não ficava recluso no quarto, mas também a minha, que passei a ficar muito mais tempo em casa, ouvindo Nandinho enquanto ele tocava e me explicava as músicas. Muitas vezes, ele me convidou a sentar ao lado dele e me desafiou a escutar e sentir os sons que saíam das teclas embaixo dos meus dedos.

- Você sente? – Ele perguntou uma vez – o poder de produzir música?

Eu não sabia como, mas entendia sim.

Algumas vezes, apenas brincávamos de fazer música, uma mão minha e uma dele passeando pelas teclas, criando combinações em improviso e sentindo a “música” que fazíamos de imediato.

- Mesmo que você não saiba tocar ainda, tudo que você faz é música. Não deixe ninguém dizer que não... Quando você toca duas, três, dez notas, você está fazendo música. Isso é muito maior do que regras e notas tocadas ordenadamente, música é isso que você faz aqui – e pegava minha mão e acompanhava meus dedos que, sem saber tocar nada, iam produzindo música por debaixo dos dedos dele.

Mesmo assim, ele tentou me ensinar a tocar. Ensinou a nota que cada tecla representava e se mostrou um professor muito paciente diante da minha total falta de habilidade.

- Eu não vou mentir pra você, Lis: Você não vai aprender rápido, ninguém aprende... Mas se você tiver paciência, vai aprender e pronto.

- Se você vier nas próximas férias, além de passar o Natal com a gente, vai poder me ensinar mais e eu prometo que vou tocar melhor.

Quando eu mencionava as férias seguintes, o convite pendia no ar e Nandinho, embora sorrisse em agradecimento, nunca aceitava e eu não sabia por que.

A rotina do casarão continuou dando voltas e, em algumas manhãs, eu conseguia convencer o primo a visitar o meu mundo, conhecendo o rio, o pomar e até os cavalos, nos quais ele apenas não ousou subir, em passeios onde íamos ambos cantarolando alguma música do dia anterior.

Até a aparência dele começou a mudar. Tia Ana e minha mãe juravam pelo nome de Deus que o menino estava mais corado e escreviam para tia Andreia para contar as boas novas de evolução. De uma forma ou de outra, eu já não via nada de feio no seu aspecto pálido e, mais de uma vez, me peguei admirando a forma como o Sol batia nos seus cabelos muito escuros e os fazia brilhar mais, ou o seu corpo que, embora magro e alto para a idade, não era desajeitado ou desproporcional.

- Eu nem acho que ele esteja mais tão magro, não viram que ele anda até comendo mais? – Minha mãe respondeu diante de um comentário da tia Ana na cozinha.

- Eu nem acho que ele seja tão magro, ele é só... Esguio. – me intrometi, usando uma palavra que havia escutando alguém dizer em outra ocasião.

Minha mãe e tia Ana olharam pra mim com alguma curiosidade antes da velha soltar:

- Acho que a pequena está vivendo a primeira paixão...

Saí da cozinha irritada, com um trovão, rejeitando inteiramente a ideia, mais para ver se Nandinho não estaria por ali e escutado o disparate que por qualquer outro motivo, deixando as duas mulheres rindo da constatação na cozinha.

Eu não sabia o que era estar apaixonada e, feliz como eu era com meus doze anos de pura liberdade pelo chão que eu desbravava descalça, eu não queria realmente saber. Mas se estar apaixonada fosse notar como os olhos, antes feios, muito azuis do Nandinho brilhavam diferente quando ele saia de casa e ficavam esverdeados quando ele parecia mais feliz era isso... Então acho que era isso que eu estava.

***

Se eu não o convencesse a fazer um passeio, por mais curto que fosse, em qualquer lugar da fazenda, eu adorava começar os dias ao piano com Nandinho, o que não significa que em todos os dias ele estivesse disposto a uma coisa ou a outra.

Havia manhãs em que ele não se juntava aos outros no café da manhã, dispensava o ovo cozido que tia Ana tentava oferecer no quarto e se desculpava comigo por não estar se sentindo bem para um passeio ou uma sessão de música ao piano.

Como eu já havia minha comentando sobre a “saúde frágil” dele, sempre achava que Nandinho havia caído com alguma gripe ou resfriado, passava o restante do dia perambulando pela casa, tocando teclas aleatórias no piano e batendo na porta do quarto para saber como o moço estava.

Em um desses dias, no entanto, antes mesmo de bater a porta, escutei um forte acesso de tosse que vinha do outro lado e, sem pensar, entrei sem bater e sem pedir licença. Nandinho estava sentado na cama, molhado de suor, curvado sobre a própria mão, que segurava um lenço branco, meio amarelado, manchado de um vermelho vivo de sangue,

Minha entrada abrupta assustou Nandinho, que olhou de mim para o lenço e rapidamente tentou esconder o pano atrás de si. Vendo a expressão de terror no meu rosto, ele logo assumiu o tom paternalista que usava, apesar de ser apenas um pouco mais velho que, quando estava tentando me ensinar o piano:

- Lis... Não deixe que isso te assuste, está bem?

- Você... Você está bem?

Ele pousou o lenço sujo na cama e veio até mim para enxugar lágrimas que mais uma vez caíam sobre minhas bochechas sem que eu percebesse.

- É claro que eu estou bem, isso... Aquilo não é nada, não se preocupe.

Ele se abaixou um pouco para ficar da mesma altura que eu e continuou:

- Talvez... Apenas talvez eu precise ir embora mais cedo do que eu planejava, me desculpe. Mas eu prometo que volto nas férias, para te ensinar a tocar um pouco mais.

A promessa de voltar nas férias afugentou o susto e me deixou feliz no mesmo instante. Notando que estava no caminho certo, Nandinho fez uma nova promessa:

- Sabe o que mais? Eu vou deixar o piano aqui para que você possa praticar o que aprendeu até agora e me mostre a boa pianista que você já vai ser quando eu voltar, com certeza.

As promessas de Nandinho logo fizeram com que eu esquecesse o sangue no lenço, mas o clima na casa ficou pesado nos dias que antecederam o seu retorno para a cidade. Ele não foi mais ao rio ou qualquer lugar fora da casa comigo e eu abri mão da minha rotina aventureira para fazer companhia a ele, aprender piano e ouvi-lo tocar as poucas músicas que ele ainda tocava antes de ficar fraco e pedir desculpas para em seguida voltar ao quarto.

No dia anterior à sua partida, Nandinho reiterou a promessa de deixar o piano, de voltar nas férias e também me deu um livro que havia trazido na mochila.

- É o meu preferido. Foi ele que fez eu gostar de música, é a história de um músico muito famoso, acho que você vai gostar.

- Não posso ficar com ele se é o seu preferido...

- Tudo bem ficar com ele, vê essas marcas? – e apontou para marcas de orelhas e páginas mais amareladas – Eu já li tantas vezes que perdi as contas, agora quero que fique com você. Pode cuidar dele até eu voltar?

Assenti, com um nó na garganta, que eu não sabia se era saudade das aulas de piano e da companhia para passear pela fazenda ou da semana que ele deveria ainda ficar se não tivesse adiantando a partida. Também queria dizer para ele que havia gostado muito de conhece-lo, apesar da minha implicância no começo e que, quando ele voltasse, talvez eu gostasse dele de outra maneira se tivesse tempo, coragem e idade de pensar nisso.

Mas como no dia em que me respondeu de onde havia vindo o piano, ele foi mais rápido e pareceu responder exatamente, pelo menos em parte, o que minha boca não conseguia dizer:

- Gostei muito de conhecer você, Lis... Vou sentir sua falta.

***

Nandinho foi embora bem cedo no dia seguinte, acompanhado de uma tia Andreia mais cansada e de alguma forma mais velha que aquela que veio deixar ele pouco mais de um mês antes. Diferente da chegada, ele falou com cada um de nós e comigo por último, com um abraço apertado e a frase que virou uma promessa entre nós dois:

- Até as férias.

- Até as férias...

Felizmente, minha última visão foi dele sorrindo pra mim, da janela do carro, enquanto eles se afastavam pela estrada de terra. Nos anos seguintes, ao me lembrar desse sorriso, eu sempre me perguntaria se ele sabia ou não. E eu sempre acharia que ele sabia sim.

Nos primeiros dias depois que ele foi embora, foi difícil retomar a rotina. Eu não tinha vontade de me divertir com os passeios pela fazenda, tampouco de tocar o piano. Com frequência, tia Ana colocava o prato dele à mesa e vez ou outra minha mãe perguntava se o Nandinho ainda estava na cama.

Mas estávamos habituados a escutar música no rádio depois do jantar e minha mãe me encorajava a continuar estudando o piano elogiando o som desordenado que saía das minhas poucas tentativas de tocar alguma música. Eram pequenas, mas significativas mudanças, que expressavam que o menino soturno havia deixado alguma marca em cada um de nós e em nossa família ao mesmo tempo.

A notícia da morte dele chegou exatamente duas semanas depois, em um telefonema cheio de choro dos dois lados, com minha tia Andreia garantindo que ele havia ido em paz. Minha mãe, com os olhos vermelhos e inchados, foi forçada a me explicar o que era leucemia, enquanto tia Ana se refugiou no quarto para chorar sozinha.

Parte de mim se sentiu traída por ter a verdade escondida de mim por todo o tempo em que ele ficou lá, um pedaço muito pequeno se reservou a ficar com raiva de Nandinho pela promessa quebrada de voltar nas férias, mas logo essas duas foram sobrepostas pela tristeza que cresceu e se apossou de mim, fazendo as lágrimas descerem pelo meu rosto, eu muito consciente de cada uma delas.

Foi só quando tia Ana saiu do quarto e minha mãe foi procurar um afazer para não passar o restante do dia chorando, que eu me sentei ao piano dele para tentar tocar a nossa música preferia. Se porque eu havia treinando bastante ou se porque eu finalmente havia chegado lá, a música fluiu de meus dedos, como as lágrimas da música e as lágrimas do choro fluíam sem parar, como o sentimento que fluiu de mim para o moço, como as lembranças que, como um rio, iriam fluir para algum lugar.