Com que roupa eu vou?...
Belas tardes de domingo velejam na lembrança de auroras que se foram. Tudo gravado no livro da memória: carreira meteórica (curta) e glamour. Era ela a mesma pessoa, mas os tempos são outros. Bons tempos... lembranças do passado, que tão rápido, se foi. Raquel escolheu a melhor roupa, nem tanto glamorosa como em seus tempos de estrela, nem de tão pequeno gosto. Cuidou ainda de não se dirigir a Ravenala, chamando-a de Vannini. Com certeza, qualquer desalinho de raciocínio, causaria desconforto irreparável. Refez cenas e cenários, contemplou cinco anos de glamour, somados a meio século de posterior anonimato: duas faces a vida lhe ofereceu: a primeira, tecida com fios mágicos de encanto e beleza, aplausos, fama e beijos; a segunda, indiferença, solidão e desprezo. No entanto, e apesar de tudo, ainda era seu o Cadilac vermelho-acetinado com o qual, no passado, esbanjara elegância e beleza na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— A senhora guarda muitos traços de beleza, fino trato e bom gosto — disse a moça.
— Minha filha, a mão poderosa do deus tempo, triturou-me os ossos. Sou estrela que o vento soprou. O resto, bem o resto, é o que ficou.
As linhas do rosto revelavam as noites mal dormidas, jornadas de glamorosa fama que hoje Raquel trocaria por uma velhice saudável. Para que lhe serviram os holofotes e as noites agitadas, se agora só tinha o negrume e a solidão? Não tinha sequer azeite para reacender a estrela que fora.
Logo após o tilintar de delicadas taças de cristal, Raquel retoma a palavra.
— Meus filhos! o amor é a brisa suave soprada pela boca de Deus. Forças adversas, no entanto, podem transformar o amor em ódio e a brisa em tempestade.
Ravenala desconversou. Ou não quis entender.
— Canhoto, Fernão? Não sabia que eras canhoto!
— É impossível andar em linha reta, quando a estrada é curva. Nasci torto, por certo, tenho um anjo torto a guiar meus passos.
— Gauche — disse Raquel esboçando um sorriso drummondiano.
— Nem tanto sinistro — completou Ravenala.
— Pensei que o anjo torto fosse anjo do mau! Seria apenas um anjo canhoto?
— O ser espiritual não se limita a espaço e tempo. Para ir a qualquer lugar, basta pensar que já está lá. A compreensão humana é que necessita de um ponto de referência, um ponto fixo, para perceber se um corpo está em movimento. Por isso, deram asas aos anjos, mesmo eles não precisando delas para se deslocarem. Como se isso não bastasse, o homem criou entidades que andam por aí com um arco, atirando flechas nos corações.
Riu.
— Que amor é este que transpassa com flechas os corações apaixonados?
— É preciso ferir a terra para que ela produza frutos. O amor é lindo, e ao mesmo tempo, feio, se não vivido com maturidade— disse Raquel.
— Se o amor é verdadeiro, tudo que se faz com amor e por amor, conduz à tão sonhada felicidade— finalizou Ravenala.
A noite imensa. Infinda. Seguia devagar como se as horas andassem a passos de tartaruga. No ar pairavam dúvidas e incertezas: alguma coisa Raquel escondia. Já Ravenala, deixou escorrer no canto da boca o suprassumo de sua alma, na esperança de que Fernão também fizesse o mesmo. Mas, ele é pedra de areia, cimento e cal. Duro como uma rocha, manteve firme o propósito de não descobrir o véu, não revelar as sombras que pairavam sobre sua cabeça. Com certeza, suas queixas eram menores do que a dor. Casara no civil e no religioso. E de que lhe valeu isto? Pensava em confessar tudo a Ravenala e o medo de perdê-la sugeria que deixasse a verdade se consumir em fogo brando. Não era mais casado. O defensor do Vínculo admitiu que, ele, Fernão, ocultara doença grave, para se casar com Vannini. Só isso bastou para que ela conseguisse a Declaração de Nulidade do Matrimônio. Então, Fernão era solteiro. Ravenala também. Ele estava disposto a assumir novo relacionamento, desde que não dependesse de assinar papel nem no cartório nem na Igreja. Trocaram olhares furtivos e sorrisos por encomenda: Muita rosa e pouca prosa.Muitos afagos e pouco daquilo que precisava ser dito e ouvido num encontro que poderia resultar em relacionamento afetivo ou não.
— Queres me dizer algo?
— Não, não! Estou só pensando em uma viagem que preciso fazer à França, para concluir meu curso de aviação.
— E nem me convidas, talvez eu possa ir junto.
— Devo ficar por lá mais de um mês. Tens a loja de informática, e o colégio que precisam de seus cuidados. Além disso, eu jamais iria a passeio. Não tenho boas lembranças das tardes cinzentas de Paris.
— Hoje já é amanhã. Então, viajas hoje.
— Tens razão. Já passou de meia noite.
Ravenala sentiu os ventos elísios congelarem seu coração. ‘Com que roupa eu vou?...Não! Não vou a lugar algum’ E se conteve em apenas levá-lo ao aeroporto.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
Belas tardes de domingo velejam na lembrança de auroras que se foram. Tudo gravado no livro da memória: carreira meteórica (curta) e glamour. Era ela a mesma pessoa, mas os tempos são outros. Bons tempos... lembranças do passado, que tão rápido, se foi. Raquel escolheu a melhor roupa, nem tanto glamorosa como em seus tempos de estrela, nem de tão pequeno gosto. Cuidou ainda de não se dirigir a Ravenala, chamando-a de Vannini. Com certeza, qualquer desalinho de raciocínio, causaria desconforto irreparável. Refez cenas e cenários, contemplou cinco anos de glamour, somados a meio século de posterior anonimato: duas faces a vida lhe ofereceu: a primeira, tecida com fios mágicos de encanto e beleza, aplausos, fama e beijos; a segunda, indiferença, solidão e desprezo. No entanto, e apesar de tudo, ainda era seu o Cadilac vermelho-acetinado com o qual, no passado, esbanjara elegância e beleza na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— A senhora guarda muitos traços de beleza, fino trato e bom gosto — disse a moça.
— Minha filha, a mão poderosa do deus tempo, triturou-me os ossos. Sou estrela que o vento soprou. O resto, bem o resto, é o que ficou.
As linhas do rosto revelavam as noites mal dormidas, jornadas de glamorosa fama que hoje Raquel trocaria por uma velhice saudável. Para que lhe serviram os holofotes e as noites agitadas, se agora só tinha o negrume e a solidão? Não tinha sequer azeite para reacender a estrela que fora.
Logo após o tilintar de delicadas taças de cristal, Raquel retoma a palavra.
— Meus filhos! o amor é a brisa suave soprada pela boca de Deus. Forças adversas, no entanto, podem transformar o amor em ódio e a brisa em tempestade.
Ravenala desconversou. Ou não quis entender.
— Canhoto, Fernão? Não sabia que eras canhoto!
— É impossível andar em linha reta, quando a estrada é curva. Nasci torto, por certo, tenho um anjo torto a guiar meus passos.
— Gauche — disse Raquel esboçando um sorriso drummondiano.
— Nem tanto sinistro — completou Ravenala.
— Pensei que o anjo torto fosse anjo do mau! Seria apenas um anjo canhoto?
— O ser espiritual não se limita a espaço e tempo. Para ir a qualquer lugar, basta pensar que já está lá. A compreensão humana é que necessita de um ponto de referência, um ponto fixo, para perceber se um corpo está em movimento. Por isso, deram asas aos anjos, mesmo eles não precisando delas para se deslocarem. Como se isso não bastasse, o homem criou entidades que andam por aí com um arco, atirando flechas nos corações.
Riu.
— Que amor é este que transpassa com flechas os corações apaixonados?
— É preciso ferir a terra para que ela produza frutos. O amor é lindo, e ao mesmo tempo, feio, se não vivido com maturidade— disse Raquel.
— Se o amor é verdadeiro, tudo que se faz com amor e por amor, conduz à tão sonhada felicidade— finalizou Ravenala.
A noite imensa. Infinda. Seguia devagar como se as horas andassem a passos de tartaruga. No ar pairavam dúvidas e incertezas: alguma coisa Raquel escondia. Já Ravenala, deixou escorrer no canto da boca o suprassumo de sua alma, na esperança de que Fernão também fizesse o mesmo. Mas, ele é pedra de areia, cimento e cal. Duro como uma rocha, manteve firme o propósito de não descobrir o véu, não revelar as sombras que pairavam sobre sua cabeça. Com certeza, suas queixas eram menores do que a dor. Casara no civil e no religioso. E de que lhe valeu isto? Pensava em confessar tudo a Ravenala e o medo de perdê-la sugeria que deixasse a verdade se consumir em fogo brando. Não era mais casado. O defensor do Vínculo admitiu que, ele, Fernão, ocultara doença grave, para se casar com Vannini. Só isso bastou para que ela conseguisse a Declaração de Nulidade do Matrimônio. Então, Fernão era solteiro. Ravenala também. Ele estava disposto a assumir novo relacionamento, desde que não dependesse de assinar papel nem no cartório nem na Igreja. Trocaram olhares furtivos e sorrisos por encomenda: Muita rosa e pouca prosa.Muitos afagos e pouco daquilo que precisava ser dito e ouvido num encontro que poderia resultar em relacionamento afetivo ou não.
— Queres me dizer algo?
— Não, não! Estou só pensando em uma viagem que preciso fazer à França, para concluir meu curso de aviação.
— E nem me convidas, talvez eu possa ir junto.
— Devo ficar por lá mais de um mês. Tens a loja de informática, e o colégio que precisam de seus cuidados. Além disso, eu jamais iria a passeio. Não tenho boas lembranças das tardes cinzentas de Paris.
— Hoje já é amanhã. Então, viajas hoje.
— Tens razão. Já passou de meia noite.
Ravenala sentiu os ventos elísios congelarem seu coração. ‘Com que roupa eu vou?...Não! Não vou a lugar algum’ E se conteve em apenas levá-lo ao aeroporto.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."