EDUARDO & MÔNICA
Não seria preciso árduo esforço de invenção e construção ficcional para conceber um conto com a temática que este livro propõe. Em meio a sequestros, tiroteios, roubalheiras e gemidos com que somos diuturnamente bombardeados, vai-nos invadindo também outra sucessão frenética de imagens: lábios vermelhos e carnudos, seios, nádegas, coxas e casais em ímpetos de devoração mútua.
Entretanto, por incrível que possa parecer, a inspiração no meu caso específico, não vinha – é, às vezes acontece – e o prazo para o fechamento da edição se extinguindo, e o editor ao telefone me cobrando: como é, manda ou não manda o texto? Que situação!
Até que, na antevéspera do dia de entrega do conto, por uma circunstância fortuita, necessitei tomar um táxi para ir resolver outro problema. Pois é. Foi dentro de um táxi que o conto veio, assim prontinho como vai abaixo – a inspiração tem artes que nem o diabo conhece. Portanto, o conto não é meu, é do taxista, todavia, não se preocupe o amigo leitor, não ocorre qualquer pornografia explícita. Se porventura não houver verossimilhança, credite-se à imaginação do motorista, e o sepultemos no vago das lendas engendradas.
*
Dou com a mão na movimentada avenida e um táxi, numa manobra arriscada, sai da faixa onde está. Breca próximo a mim. Carro novinho, possante, último modelo. Os vidros, automáticos, baixam lentamente e ouço a pergunta:
– E aí coroa, para onde vamos?
Ante tal pergunta atrevida, pensei em retroceder, mas não havia como. Uma profusão de buzinas reclama da interrupção do trânsito. Entrei de cara fechada. O jovem motorista pigarreia encabulado e diz:
– O senhor me desculpe o tratamento, mas é o hábito. O senhor sabe... minha mãe vive a me dizer que não devo me dirigir dessa forma às pessoas mais velhas, desculpe.
Minha cara trombuda se atenua um pouco e ordeno secamente:
– Para Patamares, por favor.
Os olhos do motorista brilham antevendo a polpuda corrida. Ele pergunta:
– Tem preferência pelo percurso? Podemos ir pela Paralela ou pela orla...
– Pela orla está bem.
Ficamos por dois ou três minutos calados, até que ele disse:
– Eu estou aqui pensando como é essa vida, o senhor sabe! Estou vindo do cemitério. Fui a um enterro. Uma coisa horrorosa, sabe? Essa vida tem cada uma...
– É, tem cada uma – respondi, pensando sob outra perspectiva completamente diversa da dele.
– O senhor sabe? No cemitério eu vi uma pessoa de quem eu gostei muito. Uma garota. Meu Deus, como eu amei aquela mulher...
– Foi? – perguntei, antevendo por minha vez, um fiozinho de conto. Imaginação de escritor é mais veloz do que carro de fórmula um.
– Foi. Gostei, mas não fui correspondido não. Ela preferia outro tipo de cara. Cara com grana, sabe? – disse e se calou por algum tempo até que a minha curiosidade foi maior que o silêncio dele.
– É verdade, essa vida tem cada uma mesmo... E você a viu como? Quero dizer, como ela estava?
– Estava lá. Mas não tinha mais aquela beleza, aquela graça que possuía há alguns anos. Estava magra, pálida, parecendo mesmo um cadáver, disse e voltou a calar-se. Juro que, nesse momento, se eu tivesse uma arma, apontava para ele e dizia: fala logo, peste. Conta logo tudinho aí. Só pode ter sido caso de crime passional. Fala! Porém, espontaneamente, ele retomou melancólico:
– Fui bem perto dela, olhei bem para ela e ela nem me reconheceu. O senhor acredita que ela nem me reconheceu?
– Foi mesmo? Bem... às vezes acontece, numa situação dessa. De repente você mudou assim fisicamente, o tempo opera grandes transformações.
– É. Acho que foi isso. A última vez que a vi, eu devia ter meus dezoito anos. Hoje tenho vinte e seis. Bom, já lá se vão oito anos. Sei lá...mas a Mônica, Mônica é o nome dela, mudou muito também, não está nem de longe aquela gata que parava a rua quando passava... nem de longe! Até que ela, naquela época, andou me dando bola, mas eu nunca senti aquele frete massa da parte dela.
– Frete massa?
– É. Quero dizer aquela atração, aquela vontade, aquele desejo que as mulheres demonstram quando estão a fim. O senhor deve saber, né?
– Sei. E então?
– Então que ela conheceu um cara assim todo malhado e tatuado. Um cara filinho de papai. Boa pinta, carro esporte com aquele som, roupas de marca, telefone celular, essas coisas com que as meninas se encantam. Daí o senhor já pode imaginar. Foi aquele grude, aquele love, mesmo sem a mãe dela aprovar. A dona Maria, boa dona Maria, ela não queria. Eu sei disso porque conheço a Mônica desde criança, fomos quase criados juntos. Dona Maria era funcionária pública. Criou a filha ali, com todo o cuidado. Com toda a educação, mesmo sem marido. Uma mulher muito direita.
O rapaz fez uma pausa. E eu morto de curiosidade de perguntar: quem matou quem, afinal?
– E o senhor sabe como terminou isto?
– Como?!
– Ela ficou com o tal cara. Foi na onda. Começou a fazer trancinha rasta, calcinha na virilha, silicone nos seios, tatuagens... uma doideira. Virou a cabeça, a criatura. Isso lá é amor? Que amor doido é esse que faz a cabeça da pessoa virar? Isso lá é amor? O senhor, que é mais velho, pode me explicar?
– Me parece que tem havido, cada vez mais, uma completa inversão de valores. As pessoas acham que o sexo é que leva ao amor, mas a verdade é que o amor, o conhecimento da outra pessoa primeiro, é que desagua no...
– E o pior, o pior o senhor vai ficar sabendo agora – interrompeu ele empolgado com a sua história e, em verdade, pouco interessado nas minhas definições – o pior, é o que o bandido fez com ela. Levou ela para uma pousada na Linha Verde, fez sexo com ela, e sem ela saber, filmou e gravou tudo. E, como se não bastasse, botou tudo na Internet. Olhe, meu senhor, foi um escândalo jamais visto no bairro em que morávamos. Olhe, eu lhe digo, eu Eduardo Silva, vou lhe dizer, eu que não tinha nada com ela, tive ímpetos de encher ele todo de balas. Juro que tive vontade.
– ...
– Pois foi isso. Tem uns anos isso. Ela ficou tão arrasada que foi morar no interior, em casa de parentes. A mãe coitada, ficou morando sozinha e o caso não deu em nada, ficou por isso mesmo. O tempo passou. Engraçado, quando a gente ama e não é correspondido, parece que na hora vai morrer de amor, mas depois que o tempo passa, às vezes, achamos melhor não ter acontecido nada. O senhor sabe? Um amigo em comum me contou que hoje ela mora em uma capital do nordeste e que trabalha em um grande supermercado. Diz que troca de homem como troca de roupa. Bom, mas isso é o que ele falou. Ninguém sabe se é verdade...
– Mas me conte – inquiri – você disse que foi a um enterro hoje. Quem era o defunto, afinal de contas?
– Dona Maria. Que Deus a tenha. Depois desses acontecimentos, a coitada nunca mais foi a mesma. Teve dois infartes, se operou, mas agora teve outro fulminante. É, desgosto também mata.
– Eu sei. E como mata!
Limitei-me a responder na hora. E fico aqui, neste último parágrafo, a me perguntar se um conto assim pode mesmo incutir-nos alguma proveitosa reflexão, como diz Giles: há alguma coisa “em meio a esse caos afetivo do materialismo imediatista em que vivemos, que atropela todo e qualquer referencial, sobretudo nas cabecinhas jovens”. Reflexão que certamente não será observada “pelos donos da toda-poderosa máquina de consumo que nos move”. Nós escritores é que costumamos fazer registros dessa natureza. Mas, afinal, quem liga para escritores?