A noite imensa. Infinda. Seguia devagar como se as horas andassem a passos de tartaruga. No ar pairavam dúvidas e incertezas: alguma coisa Raquel escondia. Já Ravenala, deixou escorrer no canto da boca o suprassumo de sua alma, na esperança de que Fernão também fizesse o mesmo. Mas, ele é pedra de areia, cimento e cal. Duro como uma rocha, manteve firme o propósito de não descobrir o véu, não revelar as sombras que pairavam sobre sua cabeça. Com certeza, suas queixas eram menores do que a dor. Casara no civil e no religioso. E de que lhe valeu isto? Pensava em confessar tudo a Ravenala e o medo de perdê-la sugeria que deixasse a verdade se consumir em fogo brando. Não era mais casado. O defensor do Vínculo admitiu que, ele, Fernão, ocultara doença grave, para se casar com Vannini. Só isso bastou para que ela conseguisse a Declaração de Nulidade do Matrimônio. Então, Fernão era solteiro. Ravenala também. Ele estava disposto a assumir novo relacionamento, desde que não dependesse de assinar papel nem no cartório nem na Igreja. Trocaram olhares furtivos e sorrisos por encomenda: Muita rosa e pouca prosa.Muitos afagos e pouco daquilo que precisava ser dito e ouvido num encontro que poderia resultar em relacionamento afetivo ou não.
— Queres me dizer algo?
— Não, não! Estou só pensando em uma viagem que preciso fazer à França, para concluir meu curso de aviação.
— E nem me convidas, talvez eu possa ir junto.
— Devo ficar por lá mais de um mês. Tens a loja de informática, e o colégio que precisam de seus cuidados. Além disso, eu jamais iria a passeio. Não tenho boas lembranças das tardes cinzentas de Paris.
— Hoje já é amanhã. Então, viajas hoje.
— Tens razão. Já passou de meia noite.
Ravenala sentiu os ventos elísios congelarem seu coração. ‘Com que roupa eu vou?...Não! Não vou a lugar algum’ E se conteve em apenas levá-lo ao aeroporto.
Na sala de espera, um homem contempla a beleza feminina por trás do manto: um rosto lindo, salpicado de sardas, e olhos esverdeados, separados por delicada formação cartilaginosa, sobre a qual se podia dizer: ‘oh, que nariz bonito!’ Bonito também deveria ser aquele corpo coberto por longas vestes — uma freira — quanta beleza guardada nas dobras do manto!
— Morgana Montenapoleano! É você?
A freira sorriu docemente.
— Meu nome é Paola Rhoden — quero dizer: irmã Paola — e fechou o livro que lia.
Sivory passou as vistas, ligeiramente na capa do livro.
— Essa foto...
Não concluiu a frase e Paola completou:
— Foi a última vez que estive com meu pai. Eu tinha dezessete anos. Pouco tempo depois, ele faleceu.
— Linda, muito linda!
— A música é linda. Aprendi a gostar de Pink Floyd com meu pai.
— Não falo da música — disse receoso de ser castigado pelo Céu. Ele sabia que as consagradas são servas e esposas de Deus.
Sentiu a cor do beijo de Morgana tocado pelos ventos Maristas, durante o campeonato intercolegial. Faz tanto tempo... ‘Não, não pode ser! A Morgana, uma freira? Não era ela!’ Aqueles olhos em tom esverdeado trouxeram-lhe boas recordações da infância. ‘Como esta freira se parece com a Morga!... Até o modo de sorrir lembra a colega de escola!...’ Sim, doce e pura como a menina Montenapoleano, quando dissera a ele: ‘Parabéns, campeão!... ‘E pregou no rosto dele um beijou docemente infantil.
— A madre vai a Paris?
— Desço em Dakar!
— Sou Sivory.
— Argentino?
— Não. brasileiro.
A freira recolheu o livro que largara na cadeira vizinha, e pôs na bagagem de mão. Diferente de Lispector que não lia seus textos, depois de entregá-los ao editor, Paola leu e releu ‘Dezessete Anos’, até porque, seria traduzido para edição em italiano.
— A senhora é irmã de Morgana? Nunca soube que ela tivesse uma irmã tão bonita... Falo de Morgana Montenapoleano. São irmãs?
— Somos uma colcha de retalhos, formada do tecido celular de muitas gerações. Temos esse pano velho plasmado nas entranhas: estampas e cores desbotadas do passado, presentes nesta colcha de retalhos que somos. Não somos irmãs, mas pode ser que sejamos parentes e por isso trazemos uma carga genética que nos tornam, fisicamente, semelhantes. Nunca iguais. E, embora meu nome de registro seja Paola Montenapoleano. Não somos irmãs.
— Estudei em colégio de religiosos no Rio. Cheguei a pensar em ser padre.
— Fizeste o teste vocacional?
— Não! Agendei uma entrevista com o Bispo, por insistência do Reitor, mas não compareci. Naquele mesmo dia, apresentei-me ao alvinegro. Defendi sua bandeira, até final do ano passado, quando meu passe foi vendido ao Saint-Etienne. Naturalmente, já não tenho o vigor dos anos oitenta, quando conquistei, ainda criança, a taça para nossa turma do colégio. Foi um gol lindo! Decisivo para nossa vitória.
Persistiu nele a sentença drummondiana do retrato de família viajando na carne.
— Nunca soube que Morgana tivesse alguma irmã, mas a senhora se parece tanto com ela...
— Talvez o sejamos — e sorriu no intervalo da dor — meu pai jamais me falara de outra família. Depois que minha mãe faleceu, ele me internou no convento de freiras e raramente aparecia por lá. A Madressilva contou tudo que sabia dele. Mas não era muito... Nos primeiros cinco anos, meu pai vinha visitava-me uma ou duas vezes por mês, depois disso, sumiu... Fiquei dez anos sem vê-lo. A madre foi transferida para um convento no Pará e por mais que eu tentasse colher outras informações sobre meu pai, não conseguia. Talvez a superiora já soubesse da morte dele, e não queira acrescentar mais dores ao meu coração. Eu também nunca disse que sabia que ele morrera.
Fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu.
— Esta será minha última vigem em missão! Ficarei alguns meses em Dakar e em seguida, deixarei o hábito. Pretendo tornar-me cidadã italiana, tenho um pé no Brasil e outro na Itália. Sinto muito decepcioná-lo por não ser irmã de Morgana.
— Parece tanto com ela.
— Deus utiliza molde diferente para cada pessoa, e jamais repete o mesmo modelo de rosto.
Há sempre alguma coisa que diferencia uma pessoa de outra. Somos plural e singular, um ser coletivo e ao mesmo tempo, individual e único para Deus.
— A propósito, no VIII Congresso Missionário Latino-Americano de 2008, no Equador, um padre que se identificou como Victor Augusto me fez pergunta semelhante. Tive medo de penetrar nos mistérios do passado e me calei. Preferi não revelar o pouco que sabia de mim mesma. Minha história de vida foi descrita em linhas reticentes, repletas de interrogações. Não sei quase nada do meu passado mais distante. Só o Galileu conhece a dor escondida na burca da samaritana — disse tentando por um ponto final naquele assunto.
— O padre não deu maiores informações sobre Morgana?
— Não! Não dei esta oportunidade a ele. Aprendi com o anonimato uma forma de maquiar o rosto e não rasgar lembranças. Estávamos no Coliseu General Rumiñahui, na cidade de Quito e depois daquela hora, evitei novo encontro, misturando-me com a multidão. Eram mais de três mil pessoas de diversos países da América do Norte, Sul, Central e Caribe. Delegações religiosas, movimentos eclesiais e jovens missionários leigos. Foi muito fácil me esconder de um brasileiro no meio de tanta gente estranha. Meu pai falava pouco. Parecia esconder uma de suas faces, alguma coisa que o incomodava, alguma coisa que seu coração queria dizer e ficava presa como um pedaço de maçã no pomo de Adão. Ele percebia em meu soluço as frases entrecortadas, dando nó em minha garganta
O silêncio guarda muitos mistérios, disse finalmente a freira, enquanto segurava uma lágrima que tentava escapar pelo canalículo nasolacrimal.
***
Trecho do livro: "Estrela que o vento soprou."
— Queres me dizer algo?
— Não, não! Estou só pensando em uma viagem que preciso fazer à França, para concluir meu curso de aviação.
— E nem me convidas, talvez eu possa ir junto.
— Devo ficar por lá mais de um mês. Tens a loja de informática, e o colégio que precisam de seus cuidados. Além disso, eu jamais iria a passeio. Não tenho boas lembranças das tardes cinzentas de Paris.
— Hoje já é amanhã. Então, viajas hoje.
— Tens razão. Já passou de meia noite.
Ravenala sentiu os ventos elísios congelarem seu coração. ‘Com que roupa eu vou?...Não! Não vou a lugar algum’ E se conteve em apenas levá-lo ao aeroporto.
Na sala de espera, um homem contempla a beleza feminina por trás do manto: um rosto lindo, salpicado de sardas, e olhos esverdeados, separados por delicada formação cartilaginosa, sobre a qual se podia dizer: ‘oh, que nariz bonito!’ Bonito também deveria ser aquele corpo coberto por longas vestes — uma freira — quanta beleza guardada nas dobras do manto!
— Morgana Montenapoleano! É você?
A freira sorriu docemente.
— Meu nome é Paola Rhoden — quero dizer: irmã Paola — e fechou o livro que lia.
Sivory passou as vistas, ligeiramente na capa do livro.
— Essa foto...
Não concluiu a frase e Paola completou:
— Foi a última vez que estive com meu pai. Eu tinha dezessete anos. Pouco tempo depois, ele faleceu.
— Linda, muito linda!
— A música é linda. Aprendi a gostar de Pink Floyd com meu pai.
— Não falo da música — disse receoso de ser castigado pelo Céu. Ele sabia que as consagradas são servas e esposas de Deus.
Sentiu a cor do beijo de Morgana tocado pelos ventos Maristas, durante o campeonato intercolegial. Faz tanto tempo... ‘Não, não pode ser! A Morgana, uma freira? Não era ela!’ Aqueles olhos em tom esverdeado trouxeram-lhe boas recordações da infância. ‘Como esta freira se parece com a Morga!... Até o modo de sorrir lembra a colega de escola!...’ Sim, doce e pura como a menina Montenapoleano, quando dissera a ele: ‘Parabéns, campeão!... ‘E pregou no rosto dele um beijou docemente infantil.
— A madre vai a Paris?
— Desço em Dakar!
— Sou Sivory.
— Argentino?
— Não. brasileiro.
A freira recolheu o livro que largara na cadeira vizinha, e pôs na bagagem de mão. Diferente de Lispector que não lia seus textos, depois de entregá-los ao editor, Paola leu e releu ‘Dezessete Anos’, até porque, seria traduzido para edição em italiano.
— A senhora é irmã de Morgana? Nunca soube que ela tivesse uma irmã tão bonita... Falo de Morgana Montenapoleano. São irmãs?
— Somos uma colcha de retalhos, formada do tecido celular de muitas gerações. Temos esse pano velho plasmado nas entranhas: estampas e cores desbotadas do passado, presentes nesta colcha de retalhos que somos. Não somos irmãs, mas pode ser que sejamos parentes e por isso trazemos uma carga genética que nos tornam, fisicamente, semelhantes. Nunca iguais. E, embora meu nome de registro seja Paola Montenapoleano. Não somos irmãs.
— Estudei em colégio de religiosos no Rio. Cheguei a pensar em ser padre.
— Fizeste o teste vocacional?
— Não! Agendei uma entrevista com o Bispo, por insistência do Reitor, mas não compareci. Naquele mesmo dia, apresentei-me ao alvinegro. Defendi sua bandeira, até final do ano passado, quando meu passe foi vendido ao Saint-Etienne. Naturalmente, já não tenho o vigor dos anos oitenta, quando conquistei, ainda criança, a taça para nossa turma do colégio. Foi um gol lindo! Decisivo para nossa vitória.
Persistiu nele a sentença drummondiana do retrato de família viajando na carne.
— Nunca soube que Morgana tivesse alguma irmã, mas a senhora se parece tanto com ela...
— Talvez o sejamos — e sorriu no intervalo da dor — meu pai jamais me falara de outra família. Depois que minha mãe faleceu, ele me internou no convento de freiras e raramente aparecia por lá. A Madressilva contou tudo que sabia dele. Mas não era muito... Nos primeiros cinco anos, meu pai vinha visitava-me uma ou duas vezes por mês, depois disso, sumiu... Fiquei dez anos sem vê-lo. A madre foi transferida para um convento no Pará e por mais que eu tentasse colher outras informações sobre meu pai, não conseguia. Talvez a superiora já soubesse da morte dele, e não queira acrescentar mais dores ao meu coração. Eu também nunca disse que sabia que ele morrera.
Fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu.
— Esta será minha última vigem em missão! Ficarei alguns meses em Dakar e em seguida, deixarei o hábito. Pretendo tornar-me cidadã italiana, tenho um pé no Brasil e outro na Itália. Sinto muito decepcioná-lo por não ser irmã de Morgana.
— Parece tanto com ela.
— Deus utiliza molde diferente para cada pessoa, e jamais repete o mesmo modelo de rosto.
Há sempre alguma coisa que diferencia uma pessoa de outra. Somos plural e singular, um ser coletivo e ao mesmo tempo, individual e único para Deus.
— A propósito, no VIII Congresso Missionário Latino-Americano de 2008, no Equador, um padre que se identificou como Victor Augusto me fez pergunta semelhante. Tive medo de penetrar nos mistérios do passado e me calei. Preferi não revelar o pouco que sabia de mim mesma. Minha história de vida foi descrita em linhas reticentes, repletas de interrogações. Não sei quase nada do meu passado mais distante. Só o Galileu conhece a dor escondida na burca da samaritana — disse tentando por um ponto final naquele assunto.
— O padre não deu maiores informações sobre Morgana?
— Não! Não dei esta oportunidade a ele. Aprendi com o anonimato uma forma de maquiar o rosto e não rasgar lembranças. Estávamos no Coliseu General Rumiñahui, na cidade de Quito e depois daquela hora, evitei novo encontro, misturando-me com a multidão. Eram mais de três mil pessoas de diversos países da América do Norte, Sul, Central e Caribe. Delegações religiosas, movimentos eclesiais e jovens missionários leigos. Foi muito fácil me esconder de um brasileiro no meio de tanta gente estranha. Meu pai falava pouco. Parecia esconder uma de suas faces, alguma coisa que o incomodava, alguma coisa que seu coração queria dizer e ficava presa como um pedaço de maçã no pomo de Adão. Ele percebia em meu soluço as frases entrecortadas, dando nó em minha garganta
O silêncio guarda muitos mistérios, disse finalmente a freira, enquanto segurava uma lágrima que tentava escapar pelo canalículo nasolacrimal.
***
Trecho do livro: "Estrela que o vento soprou."