Coisas que acontecem - Tourette

Os olhares, vinham de todos eles...

Em uma noite de verão, numa avenida pouco movimentada, cuja as calçadas tinham pequenos arbustos nos quais eu tropeça, cambaleava bêbada de volta para casa. Cantava músicas dos anos 70 á 90 com dois amigos, carros buzinando e pessoas nos olhando, com eu detestava aquilo, os olhares sempre me incomodaram, frequentemente me perguntava:

“ Por que as pessoas se incomodam tanto em observar aquilo que não lhe diz respeito? ”

Apesar de já acostumada com aquele tipo de olhar, a situação ainda irritava, porém, não deixaria que me atrapalhasse em minha diversão. Continuei cantando, na verdade gritando e correndo avenida a baixo, abraçada a Charles. Apreciei sua companhia desde que aparecera em minha vida, e desde então decidi jamais solta-lo. Dos olhares que já recebi, o dele era o único que me agradava, não me olhava com pena, com espanto ou repulsa, apenas me olhava, apenas isso. Às vezes, e digo as vezes mesmo, podia enxerga certo desejo em seu olhar, mas poderia ser uma daquelas coisas que a gente só imagina porque quer que aconteça e em nossa imaginação acontece mesmo. Charles é mais velho, experiente, tem ocupações melhores, na verdade nem sei porque estava com a gente, mas estava e não parecia querer ir embora, e isso já me alegrava, pois não queria ter que me despedir.

Me dei conta que tinha deixado algo pra trás, quando percebi que tínhamos saído em três, porém, agora estávamos em dois.

“Charles, onde está Emily?” - perguntei repentinamente, meus olhos piscavam incansavelmente, minha cabeça se movimentava bruscamente da esquerda pra o meio e depois do meio para direita, não de preocupação, eram apenas os tiques, os costumeiros, que nunca me abandonavam em nenhuma ocasião. Charles me olhou, espantosa e debochadamente, não pelos tiques, mas sim pela pergunta. Parecia que estava prestes a soltar um rajada de risos, mas ao invés disso, parou e olhou avenida a cima e em seguida olhou para mim. Não precisou dizer mais nada. Imediatamente começamos a correr avenida a cima e a gritar feitos loucos por nossa terceira integrante que ficara para trás.

Emily estava paralisada do pescoço para baixo, seus olhos atentos e arregalados, como se tivesse acabo de comtemplar algo assustadoramente lindo, movia a cabeça para os lados como se procurasse esse algo. Ela nos contou que havia uma garota, que a beijara e desaparecera, não consegui compreender muito bem, o efeito do álcool já embaralhava minha mente e todas as informações que ela recebia, e ainda tinha os tiques que sempre atrapalhavam minha concentração. Logo que Emily terminou, conclui que:

Ou ela tinha beijado um fantasma ou ela estava tão chapada que começou a ver e imaginar coisas, preferi acreditar na segunda hipótese.

Levamos Emily para casa, a colocamos em sua cama e esperamos até que ela dormisse, jurei que ela iria vomitar ali mesmo, mas ela só apagou. Seus pais simplesmente ignoraram nossa presença, acho que eles estavam acostumados com sua filha sendo carregada, enquanto caia de bêbada, pelos cantos da casa.

Logo em seguida Charles me levou pra casa, ficamos em silencio durante todo o percurso, o silencio um tanto figurativo, pois cada tique meu ecoava pela rua vazia. Vez um grito, vez um bater forte de pé do chã, mas Charles parecia não se importar, agia como se o silencio realmente prevalecesse. Estávamos próximos a minha casa, dois quarteirões, próximos também a um terreno baldio, até bem cuidado considerando o tempo de seu abandono. O efeito do álcool já estava passando, porém estava cansada, então diminui o passo, Charles também. Ele parou, segurou meu ombro e disse:

“Olha, nunca tente se explicar para pessoas que não entendem você, é perda de tempo”

“Eu nunca tentei, eu acho” - respondi confusa

“Você gosta de mim?”

“Claro”

“Quero dizer se gosta de verdade, sabe o que quero dizer.”

“Sim”

“Porque nunca ficamos?”

“Não sei”

“Ficaria agora?”

“Se aproxime e descubra”

Ele me puxou e me beijou, suave e lentamente, seu beijo era quente e me aquecia, suas mãos eram firmes e me tomavam toda para ele, nós andamos até a terreno baldio, não nos soltamos em nenhum momento, ele apertava seu corpo contra o meu, suas mãos deslizaram em meus quadris até minha virilha, o senti endurecer, procuravam meu clitóris.

“Eu tenho que ir agora” - não sei porque disse aquilo, afinal eu o queria, o queria ali e naquele momento e ele também me queria.

Ele parou, sorriu ironicamente.

“Tudo bem”

“Desculpe”

“Tá tudo bem”

Ele levou-me até a porta de minha casa. Aproximou seu rosto do meu, e para minha surpresa, beijou, não meus lábios, mas minha testa, um beijo suave e demorado, logo depois aproximou os lábios de meus ouvidos:

“Adeus” - disse como um sussurro

“Até mais” - respondi de imediato

Ele sorriu, mas dessa vez foi diferente, não era um sorriso alegre, ou um sorriso irônico era um sorriso forçoso que não acompanhava a expressão em seu olhar.

Não dissemos mais nada, Charles esperou até que eu entrasse para que fosse embora. E eu o espiei das grades de meu portão, até que ele dobrasse a esquina.

Cheguei em casa de madrugada, meus pais dormiam.

“Ainda bem” - sussurrei

Estava no auge meus 17 anos, e meus pais ainda não confiavam em mim e em minhas saídas noturnas, na verdade nem em minhas saídas diurnas. O que era totalmente compreensível, não apenas pelos perigos das ruas mas também pela síndrome. Tenho ela desde que me lembro, ela nunca me impediu de viver normalmente exceto, é claro, em atividades que exigiam maior concentração ou quando eu estava emocionalmente desequilibrada, porém, sempre tentei contornar essas desagradáveis situações. Mas os olhares, aqueles olhares, de desconhecidos, aleatórios estranhos, eram os verdadeiros desafios. Lidar com a Tourette era relativamente fácil, lidar com a ignorância alheia, essa era a parte difícil. As pessoas não a conheciam, por isso a julgavam, me julgavam, a maioria delas pensava que eu fazia tudo aquilo de proposito, como um brincadeira, uns achavam engraçado, outros se irritavam. Eu tendia a não dar importância, afinal eram meros ignorantes desinformados, apesar de achar que mesmo se recebessem uma aula completa e detalhada sobre a síndrome de Tourentte, continuariam ignorantes, porém seriam ignorantes com certa informação.

O Sol raivoso do meio-dia, que invadia meu quarto por entre as janelas, foi quem me deu o primeiro bom dia. Meu mundo girava e minha cabeça doía, como se algum baterista, em pleno show, fizesse um de seus solos e minha mente fosse seus tambores.

Meu estomago, também raivoso, me pedia algo para comer, fui em direção a cozinha. A única coisa que desceu estomago abaixo foram alguns biscoitos adocicados.

“ A que horas chegou ontem? ”- perguntou minha mãe enquanto preparava o café.

“Tarde... tic “- respondi friamente entre um tique e outro.

“Tomou seus remédios Dinah? ”

“Sim”- menti.

Minha mãe não disse mais nada, já havíamos tido aquela discursão antes e nos duas sabíamos que não chegaria a lugar algum. Eu era falha com minha medicação, detestava-os tanto quanto a Tourette. Minha mãe sabia disso, forçava-me a toma-los, eu fingia toma-los, ela descobria, nos brigávamos e depois voltávamos ao início, era um ciclo vicioso.

Naquele mesmo dia, ao cair da tarde, fui visitar Emily. Precisava conversar e acredito que ela também.

Sua casa não é exatamente longe de onde moro, mas também não é próximo, e já que, sua casa é apenas um quarteirão do metrô, não pestanejei em utiliza-lo como meio de transporte daquela vez, não estava muito afim de andar.

Já no vagão, esperava chegar na estação de destino. No vagão silencioso e sombrio, onde só se ouvia cochichos, músicas que transcendiam os fones de seus auditores e as rodas do trem se arrastando pelos trilhos. Os vagões de trem sempre carregaram um estranho clima tristonho para mim, me perguntava o motivo, devia ser pelo silêncio, os bancos voltados um de frente para outro que nos dava a estranha sensação de estarmos sendo constantemente observados ou os trilhos do trem sendo violados por robustas rodas que se arrastavam sob ele dando a ideia de algo que se espatifará em muitos e minúsculos pedaços.

Em uma das paradas na estação, uma mulher de longos cabelos avermelhados e com pequenas sardas espalhadas pelo rosto, embarcou. Seus cabelos quase refletiam a fraca luz que entrava pelas janelas do vagão, seus olhos verde-claros se destacavam em seu delicado rosto, vestida de vermelho e preto, cores que realçavam o branco de sua pele, o tipo de branco que se tornava vermelho com facilidade, se exposta por muito tempo ao Sol, ou algo do tipo. Assim que embarcou atraiu todos os olhares para si, principalmente dos homens que estavam próximos a porta, que a olhavam com desejo, também das mulheres, cujo algumas a olhavam com certa inveja, outras também com o mesmo desejo dos homens e eu, que não sentia desejo ou inveja, sentia, na verdade, certa admiração. De fato, era impossível ignorar a presença da mulher de cabelos vermelhos.

Minha cabeça ainda doía, não tomar os remédios pela manhã, havia sido um erro, eu os detestava porem ele me ajudavam a lidar com a multidão, que me deixava nervosa, mais precisamente, deixava a Tourette nervosa, e não demorou para que ela reclamasse, com seus chutes, gritos entre outros tiques. Em um piscar de olhos, tinha a total atenção novamente, os cochichos aumentaram de proporção e os olhares que estavam na mulher de cabelos vermelhos se voltaram para mim, toda aquela atenção deixou-me ainda mais desequilibrada. Foi como estar na primeira serie novamente, quando uma de minhas professoras, que estava visivelmente exausta, me mandara calar a boca e me colocara de castigo, depois que eu não atendera seu pedido. Ela não sabia de meu pequeno problema, e eu sabia disso, porém, senti culpa por atrapalhar a aula, por causar transtorno e incomodo naqueles a minha volta. E esse mesmo episódio se repetia naquela tarde. Mas agora quem deu o grito não foi apenas uma professora exausta de seus alunos:

“Pelos céus, alguém pode dizer para essa garota ficar quieta!” – O grito surgiu de um homem de camisa social xadrez azul, que se encontrava a uns bancos a minha frente. “Não se pode ter paz nem no vagão de trem, ela está assim desde que embarcamos.”

“Eu não consigo” - sussurrei baixinho e em vão, enquanto ouvia os cochichos aumentarem.

“Por favor, estou lhe pedindo com toda educação, chega, ninguém aguenta mais” – dessa vez a reclamação, que veio quase como uma ordem cordial, surgiu de uma mulher sentada ao meu lado, tinha cabelos castanho claro jogados nos ombros e usava um blazer bege, que a fazia parecer uma mulher que perdera toda sua vitalidade.

“Não posso” - disse novamente, com o volume um pouco mais elevado que anteriormente, mais uma vez vão, entre um tique e outro, que agora mostravam-se cada vez mais. Meus olhos piscavam freneticamente, meus pés batiam bruscamente no chão, como se encenasse um cover mal feito e irritante de “We Will Rock You”.

“ Já chega, não!?’- reclamou o homem mais uma vez, enquanto fazia caretas de irritação.

“ E por que você não cala a porra da boca!?” – Os olhares se voltaram para outro lugar do vagão e os cochichos sessaram por um breve momento, pois agora, era a mulher de cabelos vermelhos que gritava. - “Se está incomodado desça do vagão e pegue um taxi, assim terá todo conforto que deseja”

“ Eu tenho meus direitos, paguei para estar aqui e mereço o mínimo de respeito, deveria dizer isso para a garota ao seu lado que não para de gritar. ”- retrucou o homem-“ Tenho certeza que não sou o único incomodado aqui. ”

“Ela também pagou para estar aqui e também merece o mínimo de respeito” - a disse a mulher firmemente. - “Pensa um pouca mais antes de sair falando merda, e procure saber com quem está lidando, ela não está apenas “gritando” - disse enquanto encenava aspas com as mãos. “Se chama Tourette, procura num livro ou no google, sabe, ele não serve só pra assistir pornografia. ”

O homem se calou, obviamente não sabia nada sobre Tourette, o que era ou porque existia, mas era esperto o suficiente para saber que era aquilo que causava meus “gritos”. Ele resmungou mais uma vez enquanto caminhava para outro vagão a frente.

A mulher o encarou enquanto ele seguia para seu destino e em seguida encarou todos os outros passageiros que a olhavam e cochichavam, que desviaram os olhares um a um, cada vez que a mulher de cabelos vermelhos os fitava.

Aquilo me deixou um pouco mais calma, e quando consegui falar sem sussurros eu a agradeci:

“ Ei, valeu”- disse enquanto puxava sua blusa para lhe chamar a atenção.

“ Disponha”- disse com um dócil sorriso no rosto, sentando ao meu lado assim que o trem parou em uma estação e a mulher de blazer bege e cabelos castanhos desembarcou. - “As pessoas são ignorantes a maior parte do tempo” - concluiu enquanto olhava para mim, ainda com o dócil sorriso no rosto.

“Eu só queria não chamar tanta atenção, não desse jeito, ...chuif... gostaria que as pessoas olhassem através da tourette, “- disse enquanto meus tiques nervosos diminuíam de proporção- “Olhassem para mim se verdade, assim como olham para você.”

“Olha, assedio também não é uma coisa legal de se lidar sabia?” - disse logo em seguida- “Fico lisonjeada com seu elogio, se é que foi um elogio, mas a maior parte da atenção que ganho são de babacas como ele” - disse erguendo a cabeça e olhando para o homem de blusa xadrez azul que fora para outo vagão. Enquanto ela olhava para o lado, notei algumas suaves marcas em seu pescoço, que pareciam hematomas cobertos por maquiagem. Eu os ignorei.

“Como sabe o que e Tourette?” perguntei.

“Um amigo, ele tinha a síndrome, só que além dos tiques, ele sofria com desmaios constantes, os espasmos eram bem mais bruscos também. Até já levei um soco dele uma vez” - disse com certo divertimento e melancolia. “Ele morreu já faz anos.”

“O que aconteceu?”

“Suicídio, foi o que aconteceu, acho que ele só se cansou, só isso”

“Entendo, é uma pena”

“É sim.” - como pudesse ver o rosto de seu amigo enquanto olhava para a porta do trem. “Desço na próxima estação. Olha quando algum merda desses aparecer de novo, mande ele ir se fuder, e mande também todos os outros que te lançam esses olhares, as pessoas adoram julgar a vida alheia mesmo estando completamente isentas a ela.” – disse enquanto se levantava para seu desembarque.

“Pode deixar” - respondi, oferecendo-lhe o mesmo sorriso que ela me lançara a alguns segundos atrás. “ E valeu mesmo” – agradeci mais uma vez.

“ Não por isso”- disse sorrindo de volta.

Logo em seguida ela desembarcou. Não perguntei seu nome, sua idade, para onde ia, de onde vinha, o porquê daquelas marcas no pescoço ou de seu amigo suicida. Não tive tempo, mesmo se tivesse acho que não perguntaria. Penso que essas são o tipo de perguntas que não se faz a estranhos.

A mulher de cabelos vermelhos surgiu como um escudo para mim naquele momento, gostaria muito de tê-la reencontrado, porém, nunca mais a vi, nem naquele vagão ou em nenhum outro, ela simplesmente aconteceu e se foi.

Regiane Martins Nonato

Junho/2017

Regiane Abelha
Enviado por Regiane Abelha em 25/02/2018
Reeditado em 25/03/2018
Código do texto: T6263974
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