Ah, sopro de amor que singra os mares
Olhares acessos voltados para casa
Como brasa que incendeia a alma.
Naquele dia, o encontro pareceu fora de propósito. Robert mostrava-se sem ânimo para escrever. Sentia-se algemado e com um freio cabrestante na boca. Não sabia por onde começar e recebeu Ravenala com um sorriso fabricado:
—Incomoda-se se eu tocar baixinho um disco do Fábio.
— Se for Alma Gêmea, já está tocando.
Tomou suco de abacaxi para ajudar na digestão de um batráquio que engolira na loja: teve que trocar uma peça visivelmente danificada pelo freguês e ouvir a ameaça de denunciá-la ao Programa de Orientação e Proteção ao Consumidor. Pensou em acrescentar que já engolira muitos sapos. Não disse. Até porque, já tivera que explicar ao PROCON outras denúncias contra a loja de informática.
Robert parecia triste, não sabia como enxugar seu passivo, nem seu passado, porque o passado doído de menino criado sem pai, nunca passou. E, naquela noite. Bem, naquela noite, o enxugamento de Estrela que o vento soprou, ficou prejudicado.
Chove lá fora. Gotas miúdas escorrem na vidraça da janela.
— Parecem lágrimas...
— A vida é uma janela escancarada para o mundo, uma grande tela pintada com estilo e arte.
— Bob, esta é para encerrar o expediente?
— A noite é velha.
— Se não é benfazeja para tua alma, encerremos por hoje esta jornada.
— Onde acontecerá a próxima tertúlia?
— No sítio de Alice.
— Passo amanhã às 17:00h.
— Até amanhã.
O sítio reconstruía em Ravenala a imagem das tardes de domingo, na Quinta da Boa Vista, algumas vezes na companhia de Ramayana e Morgana ou com outros colegas de sala.
— Robert vai? Perguntava Jeremias.
— Talvez!...
— Podes convidar também o José Américo, se quiseres.
Ravenala abortou as lembranças da Quinta da Boa Vista e aterrissou no sítio. Olhou uma gigantesca mangueira carregada de frutos e disse com doçura:
—Lindo!
— Obrigado. Eu também te acho linda.
— Não estou falando de ti, Bobinho! Falo delas...
— As mangas-rosa são de agradável sabor aos olhos.
— As mangas são lindas, mas estou falando do casal de maracanãs trocando carinhos no galho.
— Parece que se beijam, enquanto catam piolhos, ou catam piolhos, enquanto se beijam.
— Não estão catando piolho, bobinho!...
— Nos rituais de acasalamento, as fêmeas escolhem o macho que canta melhor.
— Não estou ouvindo o canto do macho.
— Pelo visto, já cantou...
Robert aproximou-se. Como por um impulso beijou-a na boca, meio sem jeito, meio fora de prumo. Ela tremeu. Suou frio.
Eros pediu um minuto e silêncio. Desajeitado, Robert disse alguma coisa meio sem nexo:
— Viste A Lagoa Azul?
Ravenala teve vontade de dizer que viu estrelas e um raio de fogo percorrer seu corpo. Mas ela aprendeu que se deve responder apenas o que foi perguntado.
— A Lagoa Azul, é uma linda história que se passa numa ilha. Às vezes viajo na imaginação, e me sinto numa ilha deserta...
— Ficar vendo o pôr do sol todo dia? Pássaros em revoada, o ribombar das ondas. Sempre a mesma coisa. Monótono demais!
— Não, se virmos o raio verde.
— Isso é lenda.
— Navegando na ficção, Júlio Verne descreve um submarino, quando ainda não existia nenhuma embarcação que viajasse abaixo do espelho das águas.
— Não é preciso estar numa ilha para ver o raio verde. Basta um final de tarde na praia.
— Hoje não há mais tarde. São vinte horas.
— Isso significa que é hora de voltarmos.
— Sim, mas antes quero contar um segredo.
— Não somos mais crianças. Não vais falar sobre o quarto secreto, vai?
— É outra coisa. Vi teu nome escrito em uma página amarelada no baú de meu pai.
— Leste?
— As linhas introdutórias, apontavam para um pedido de desculpas.
— Não leste tudo?
— Meu pai chegou trazendo a aquarela de Toquinho e uma folha de papel em branco, dizendo ser o túnel do tempo... Eu estava mais interessada em saber o que estava escrito naquele papel que acabara de encontrar no baú dele. Fiquei curiosa.
—Eu também
— Não tinha visto aquela chave antes. Agora ele larga a chave em qualquer lugar, como se quisesse que eu encontrasse algo que não tem coragem de revelar. Alguma coisa misteriosa, cujo mistério se oferece para ser desvendado.
— Falavas sério. Agora me vem com mistérios.
— Mistério que oferece mais de uma leitura, pois nunca se sabe o que contém o baú.
— Essa é boa. Vais falar do turco que guardava um segredo a sete chaves?
— Acho que é hora de voltar pra casa.
Teve vontade de contar as objeções sobre o namoro dos dois que o pai dela insinuava haver descoberto. “Não gosto dessa intimidade com o Bob” disse certa vez, seu Jeremias. “Estamos escrevendo um livro a duas mãos.” Respondeu ela.
— Livro? Afinal, qual o foco? Moral católica tem leque restrito. Já os livros que oferecem solução para todos os problemas, vendem muito. Mas mentem. São verdadeiros apenas quando ensinam a ganhar dinheiro fácil. Realmente, se alcançarem boa vendagem, o autor, ganha muito dinheiro.
A voz narrativa calou-se extasiada. Cessaram os sinos que batiam, enquanto reescrevia as últimas páginas do enredo. Refez cenas e cenários, deslizou o mouse sobre duas ou três linhas no final do último capítulo. Não conferiu o que selecionara e clicou em recortar. Salvou, e desligou a máquina. E ao reabrir o arquivo, no dia seguinte, seu livro tinha sumido, das 256 páginas, restavam apenas 23 palavras. Ravenala chorou. Estava tão focada no que perdeu, que esqueceu o que tinha ganhado. Ou não. Se Robert fosse seu irmão? Bem neste caso, teria ganhado um irmão. Passou a mão nos olhos, limpou as lágrimas, mas não conseguiu estancar o choro. Acabara de perder dez anos de trabalho.
***
Extraído do livro "Estrela que o vento soprou."