Ensinarás a voar... Ensinarás a sonhar....
Ensinarás a viver. Mas não viverás teus sonhos.
O Auto da Alma se lhe passou na mente. Lentamente, sua respiração diminuía, e as batidas do coração se tornavam menos frequentes. Ouviu o rufar de asas: ‘Venha!’ E quando percebeu estava voando em direção às sombras. A luz sumia na distância, cada vez mais longe. Até que, na última hora, abraçou a Cruz. Venceu o abismo e viu o anjo negro desaparecer na escuridão. O padre sobrevoou a montanha santa e sem temor nem medo, escarneceu do anjo negro e voou para a Luz.
Davi viu ainda cenas de seu juízo particular: São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Persignou-se. Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito. Levantou-se. Tomou a porta de saída. Sentiu um vento sussurrar em seus ouvidos: ‘A muitos, ensinaste, deste força a mãos frágeis. Tuas palavras levantavam aqueles que caiam. Agora tu mesmo enfraquecesses. E em lugar do pão tens o soluço.’
Fechou a igreja, andou a passos largos até o beco dos aflitos e entrou na tenda do pecado.
— Bom— dia, minha filha! O padre não tem quem lhe faça o almoço hoje — disse ele ao deparar-se com Chanana a recolher, apressadamente, as calcinhas estendidas no varal — desculpe-me por não anunciar minha chegada.
— Entre.
— Os cães não pedem permissão para comer as migalhas que caem da mesa do rico.
— Bem vindo homem de Deus.
— Não tenho mais certeza se estou a serviço de Deus. Eu bem sei que tu és Clara, e eu, um cisco na casa de Assis.
— Clara? Sou uma nesga de lua, tentando rasgar o negrume das minhas noites de insônia.
— Se falas dos espinhos da carne, eles me ferem, mortalmente, nas poluções noturnas que tenho em sonho com uma paroquiana. Dormindo ou em vigília, meus pesadelos me acompanham.
— Evite pensar na pessoa que tem sido a causa de suas elucubrações.
— Não consigo vê-la sem que me venha o desejo de tocá-la, sentir a maciez de sua pele, acariciar suas mãos e cabelos. E porque não posso fazer corporalmente, meu pensamento vai aonde a mão não alcança.
— Espinhos da carne.
— Sim. O homem que mortifiquei em mim, quer ressurgir das cinzas. E essa chama que arde sem queimar tem nome.
— Amor platônico?
— Não. Chanana Tupixá.
— Cruz credo. Não quero ser motivo de escândalos. Se alguém se perder por causa do meu pecado, serei culpada de morte, e ambos iremos para o inferno.
— Somos como pedra que anda. E mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos de Abraão.
— Queres dizer: pedras que se consomem?
— Sim. Que se consomem de amor, como gelo que derrete na presença do fogo.
— Ai daquele que for motivo de escândalo para o semelhante.
—Tu podes ser o atrativo que Deus quer usar para revelar minha vocação.
— Podemos ser amigos na fé. Contanto que sejamos prudentes.
— Sinto restauradas minhas forças, quando estou em tua presença. Vais me negar isso?
— Não sou deusa do amor. Se me conheceres melhor, quebrará teu encanto por mim.
— I love my life, because…
Ensinarás a viver. Mas não viverás teus sonhos.
O Auto da Alma se lhe passou na mente. Lentamente, sua respiração diminuía, e as batidas do coração se tornavam menos frequentes. Ouviu o rufar de asas: ‘Venha!’ E quando percebeu estava voando em direção às sombras. A luz sumia na distância, cada vez mais longe. Até que, na última hora, abraçou a Cruz. Venceu o abismo e viu o anjo negro desaparecer na escuridão. O padre sobrevoou a montanha santa e sem temor nem medo, escarneceu do anjo negro e voou para a Luz.
Davi viu ainda cenas de seu juízo particular: São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Persignou-se. Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito. Levantou-se. Tomou a porta de saída. Sentiu um vento sussurrar em seus ouvidos: ‘A muitos, ensinaste, deste força a mãos frágeis. Tuas palavras levantavam aqueles que caiam. Agora tu mesmo enfraquecesses. E em lugar do pão tens o soluço.’
Fechou a igreja, andou a passos largos até o beco dos aflitos e entrou na tenda do pecado.
— Bom— dia, minha filha! O padre não tem quem lhe faça o almoço hoje — disse ele ao deparar-se com Chanana a recolher, apressadamente, as calcinhas estendidas no varal — desculpe-me por não anunciar minha chegada.
— Entre.
— Os cães não pedem permissão para comer as migalhas que caem da mesa do rico.
— Bem vindo homem de Deus.
— Não tenho mais certeza se estou a serviço de Deus. Eu bem sei que tu és Clara, e eu, um cisco na casa de Assis.
— Clara? Sou uma nesga de lua, tentando rasgar o negrume das minhas noites de insônia.
— Se falas dos espinhos da carne, eles me ferem, mortalmente, nas poluções noturnas que tenho em sonho com uma paroquiana. Dormindo ou em vigília, meus pesadelos me acompanham.
— Evite pensar na pessoa que tem sido a causa de suas elucubrações.
— Não consigo vê-la sem que me venha o desejo de tocá-la, sentir a maciez de sua pele, acariciar suas mãos e cabelos. E porque não posso fazer corporalmente, meu pensamento vai aonde a mão não alcança.
— Espinhos da carne.
— Sim. O homem que mortifiquei em mim, quer ressurgir das cinzas. E essa chama que arde sem queimar tem nome.
— Amor platônico?
— Não. Chanana Tupixá.
— Cruz credo. Não quero ser motivo de escândalos. Se alguém se perder por causa do meu pecado, serei culpada de morte, e ambos iremos para o inferno.
— Somos como pedra que anda. E mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos de Abraão.
— Queres dizer: pedras que se consomem?
— Sim. Que se consomem de amor, como gelo que derrete na presença do fogo.
— Ai daquele que for motivo de escândalo para o semelhante.
—Tu podes ser o atrativo que Deus quer usar para revelar minha vocação.
— Podemos ser amigos na fé. Contanto que sejamos prudentes.
— Sinto restauradas minhas forças, quando estou em tua presença. Vais me negar isso?
— Não sou deusa do amor. Se me conheceres melhor, quebrará teu encanto por mim.
— I love my life, because…
Vi o filme. Não precisa concluir a frase. Nem traduzir.
Gostaria de ter sido eu o autor desta obra.
Gostaria de ter sido eu o autor desta obra.
— Linda história de amor escrita por Erich Segal....Podemos ser amigos, contanto que respeites minha condição de casada. Sejamos prudentes. Se for vontade de Deus, seremos como Clara e Francisco.
— Androceu não vai durar muito tempo. Não deve ter mais fígado. A cachaça corroeu tudo...
— Não quero que o mau estado de saúde do meu marido, lhe cause alguma esperança após a morte dele. Não temos nada em comum...
— O que sinto não está preso somente à carne. É algo maior. Vais negar-me isso? Dize-me então que nem Deus pode amar um ser da minha estirpe. Joga-me ao chão. Pisoteia, e eu agarrarei em ti como Jacó ao calcanhar de Esaú e verei a luz.
— Agostinho viveu a concupiscência da carne, depois se converteu. Queres viver agora o processo inverso.
— Rei Davi quebrou a aliança com Deus, e tomou para si a mulher de Urias, no entanto...
— Isso não justifica. Aqueles tempos eram outros. Hoje em nosso País, bigamia é crime...Além disso, não queiras para tua descendência a mesma sorte do filho da mulher de Urias, ou a morte prematura de Adeodato: ‘Cedo o levaste.’— Confessou Agostinho.
— É bom estar contigo. Não vejo a hora de atravessar a ponte. E contemplar a face santa da mulher que guarda a fonte eterna da minha alegria.
— Poético, mas, não sejamos para o mundo, motivo de escândalo. Sempre tive desejo de ser mãe. Nunca tendo um padre por marido. Muito me assusta a lenda da mula sem cabeça.
Não ocorreu ao padre outro tipo de argumentação, senão...
— Tenho fome.
— Não há nada especial no cardápio, se não se incomodar com o trivial. Vamos comer arroz, feijão, bife, e ovo frito.
— Ótimo!
Algum tempo depois, Davi parou ao lado dela. Logo, um sentimento indescritível tomou conta de sua alma. E Chanana chorou.
— Anjo não chora — disse o padre esboçando leve sorriso.
— A mesa é posta — disse ela, enxugando com o dorso da mão uma lágrima que lhe escorria no rosto.
— Menina, os filhos de Candinha falam de sua gravidez. Torne-a pública enquanto Androceu é vivo.
Durante o almoço, o padre tentava, sutilmente, identificar alterações no corpo de Chanana, provocadas pela gravidez que ela confessara como pecado de fornicação, e ficou contente em pensar na possibilidade de ela estar vivendo a síndrome da gravidez psicológica.
— Como está a saúde de minha paroquiana?
— Tenho sentido tonturas e enjoos.
Davi sabia que uma falsa gravidez pode apresentar sinais, não apenas visível à mulher que acredita estar grávida, mas ocorrer outros sintomas como o aumento do volume abdominal e enjoos. Orou antes da refeição e desejou que Chanana estivesse passando, realmente, por um processo de gravidez psicológica. Não era bom para a Igreja o escândalo de uma paroquiana, amiga do padre, cujo marido era estéril, aparecer grávida. Embora também o povo falasse à boca miúda da intimidade dela com o bicheiro Martiniano de Castro, isso não lhe garantia isenção das más línguas. Ele não queria que nenhum escândalo comprometesse seu sacerdócio. Muitos sabiam que Androceu fora castrado, e tivera um casamento forjado por Martiniano, para encobrir um crime praticado por aquele bicheiro.
***
Extraído do livro "Estrela que o vento soprou."
— Androceu não vai durar muito tempo. Não deve ter mais fígado. A cachaça corroeu tudo...
— Não quero que o mau estado de saúde do meu marido, lhe cause alguma esperança após a morte dele. Não temos nada em comum...
— O que sinto não está preso somente à carne. É algo maior. Vais negar-me isso? Dize-me então que nem Deus pode amar um ser da minha estirpe. Joga-me ao chão. Pisoteia, e eu agarrarei em ti como Jacó ao calcanhar de Esaú e verei a luz.
— Agostinho viveu a concupiscência da carne, depois se converteu. Queres viver agora o processo inverso.
— Rei Davi quebrou a aliança com Deus, e tomou para si a mulher de Urias, no entanto...
— Isso não justifica. Aqueles tempos eram outros. Hoje em nosso País, bigamia é crime...Além disso, não queiras para tua descendência a mesma sorte do filho da mulher de Urias, ou a morte prematura de Adeodato: ‘Cedo o levaste.’— Confessou Agostinho.
— É bom estar contigo. Não vejo a hora de atravessar a ponte. E contemplar a face santa da mulher que guarda a fonte eterna da minha alegria.
— Poético, mas, não sejamos para o mundo, motivo de escândalo. Sempre tive desejo de ser mãe. Nunca tendo um padre por marido. Muito me assusta a lenda da mula sem cabeça.
Não ocorreu ao padre outro tipo de argumentação, senão...
— Tenho fome.
— Não há nada especial no cardápio, se não se incomodar com o trivial. Vamos comer arroz, feijão, bife, e ovo frito.
— Ótimo!
Algum tempo depois, Davi parou ao lado dela. Logo, um sentimento indescritível tomou conta de sua alma. E Chanana chorou.
— Anjo não chora — disse o padre esboçando leve sorriso.
— A mesa é posta — disse ela, enxugando com o dorso da mão uma lágrima que lhe escorria no rosto.
— Menina, os filhos de Candinha falam de sua gravidez. Torne-a pública enquanto Androceu é vivo.
Durante o almoço, o padre tentava, sutilmente, identificar alterações no corpo de Chanana, provocadas pela gravidez que ela confessara como pecado de fornicação, e ficou contente em pensar na possibilidade de ela estar vivendo a síndrome da gravidez psicológica.
— Como está a saúde de minha paroquiana?
— Tenho sentido tonturas e enjoos.
Davi sabia que uma falsa gravidez pode apresentar sinais, não apenas visível à mulher que acredita estar grávida, mas ocorrer outros sintomas como o aumento do volume abdominal e enjoos. Orou antes da refeição e desejou que Chanana estivesse passando, realmente, por um processo de gravidez psicológica. Não era bom para a Igreja o escândalo de uma paroquiana, amiga do padre, cujo marido era estéril, aparecer grávida. Embora também o povo falasse à boca miúda da intimidade dela com o bicheiro Martiniano de Castro, isso não lhe garantia isenção das más línguas. Ele não queria que nenhum escândalo comprometesse seu sacerdócio. Muitos sabiam que Androceu fora castrado, e tivera um casamento forjado por Martiniano, para encobrir um crime praticado por aquele bicheiro.
***
Extraído do livro "Estrela que o vento soprou."