A garota que eu amo
Queimando toda fé
Seja o que Deus quiser, eu sei
Que amargo é o mundo sem você
LS Jack
Cabelos multicoloridos, de jabuticaba os olhos, carinha de boa menina. Carla Fênix tem o sorriso da mãe e o semblante sisudo do pai. Segundo dizem, ela foi gestada em um fim de festa, nasceu no início de uma festiva manhã e cresceu ao som dos grandes bailes do interior. Seu pai e sua mãe viveram muito bem enquanto estiveram juntos. Depois de algum tempo, optaram por ser feliz, cada qual a seu modo. A pequena seguiu ora com um, ora com outra; nem feliz, nem triste apenas criança.
-Filhinha, esse coraçãozinho é do papai ou da mamãe?
-De mim também!
Carla sempre teve dois lares, pôde usufruir da solidão e da multidão dos lugares. No fim da infância conquistou o que poucos conquistam no meio da vida: a irrestrita confiança de seus pais. É óbvio, porém, que nem todo mundo confiava nela. Algumas pessoas achavam-na displicente demais; outras a consideravam uma irresponsável desprovida de todo bom senso. Pensavam assim porque a viam como alguém que não gosta de seguir as regras feitas e seguidas por outros.
-Essa mocinha tem o rei na barriga.
-E asas nos pés.
Não queria a quietude dos lugares. Desejava o som do combate. Lia como quem boxeia. Seus olhos eram punhos na página. Pequenos episódios da juventude servem para exemplificar a força de sua personalidade. Certa vez, viajou duzentos quilômetros de carona até a cidade grande mais próxima apenas para doar sangue. Viu no telejornal que pessoas morriam por falta de. Alguns parentes ficaram preocupados. A menina poderia sair uma freira, beata, filantropa, ou alguma outra coisa que eles não aprovariam. Depois desse dia, seus vizinhos não eram mais tão indiferentes em relação à Carla Fênix.
-Essa moça tem futuro!
-É o que a mãe dela pensa.
Certa feita doou todas as suas roupas novas para as mocinhas, filhas dos migrantes, que chegaram de terras distantes para trabalhar nas lavouras ao redor da cidade. Quando lhe perguntaram por que não havia doado as roupas usadas ou velhas, ela respondeu que aquelas meninas não eram garis para recolher aquilo que ela não usaria mais. Insinuaram também que essa bondade toda era um despropósito e disseram que ela doava porque não era ela quem comprava. A isso, Carla respondeu com um dar de ombros. E mais disseram:
-E se elas pedissem dinheiro pra você?
-Qualquer pessoa pode pedir o que quiser para qualquer outra.
Tinha opiniões fortes que beiravam o dogmatismo no que se refere à vida humana. Quando uma parcela dos meios de comunicação de massa, e boa parte da sociedade, defendia a pena de morte para os crimes mais graves, Fênix costumava dizer no seu círculo de amizades que só quem pode tirar a vida de alguém é aquele ou aquela que a gerou. Falava isso com uma certeza religiosa, pois intuía que nenhum pai e nenhuma mãe, em sã consciência, desejaria eliminar a própria prole.
-E se um bandido mata uma pessoa inocente?
-E quem mata o bandido é inocente?
Ademais era geniosa e genial. Boa aluna e excelente ouvinte. Tinha seus planos sobre o futuro. Imaginava que o futuro era um domingo de manhã, por isso vivia sempre na iminência de tocá-lo com as pontas dos dedos. Para as poucas amigas, costumava confidenciar que o futuro não é algo que se espera. É alguma coisa que surge entre o nascer e o pôr do sol todos os dias. Certa vez me disse algo que ressoa triste e enigmático, não obstante é para mim uma esperança:
-Você consegue amar e dizer adeus?
-Não consigo dizer adeus.
Está morando na capital. Recentemente troquei mensagens com ela; recebo textos simples, conciso: oi, tudo bem, como vai, me liga quando puder. Fiquei tão feliz que solucei. Solucei alto e tossi para disfarçar. Então, liguei o carro e fui para os arredores da cidade. Já era tarde e os trabalhadores e trabalhadoras voltavam para suas casas. Eu estava pensativo e sonolento, mas não estava cansado e portava um sorriso primaveril.