Carta
“É tão difícil ter que te ver assim... eu jamais imaginei poder ser possível. E aqui está, de frente a mim... Você... sem vida...você... e os meus tantos porquês... meu resto de vida... e essa carta provavelmente inútil.
Bem, não vou te incomodar. Você está linda como sempre. Sei que todos que aqui estão também sentem muito por você, mas sei que existem coisas únicas, coisas nossas. Coisas que serão eternamente nossas. E é por isso que te escrevo essa carta. Porque preciso de um imenso favor seu. Preciso que entregue essa mensagem a Ele; ao que te espera...
Sabe por que, meu amor? Porque tu eras pra mim o único motivo pra que eu Nele acreditasse. E porque tenho tantas dúvidas... Mas a tua falta é tão sem sentido que eu preciso que Ele me responda, ou pelo menos te responda, quando entregares essas palavras; do que se trata tudo isso? O que Ele quer afinal?
Não, eu sei que não é tão fácil. Mas vou tentar fazer com que entenda um de meus porquês.
Eu acreditei que tu serias eterna. Tua morte, teu cessar, teu fim, pra mim era algo sequer mensurado, porque eu achei que assim seria o certo, o justo, pelo que você era. Não havia motivo pra que te fosse negado existir, nesse plano, ou em qualquer outro em que pudéssemos estar juntos, sem que te fosse permitido saber... Você apenas se foi. Sem saber... Parece até dormir... aqui... de frente a mim...
Bom, eu peço desculpa por chorar... Mas só escrevo porque acredito agora na tua fé. Lembra quando você me contou que na hora certa os mortos levantariam de seus túmulos e eu te disse rindo que seria um espetáculo assustador uma imensidão de esqueletos e seres em decomposição caminhando entre vivos perplexos com o tal Livro na mão e sem saberem se se tratava do fim ou não, e você me disse que estariam vivos? Perfeitos? Sem as marcas da morte? É isso que espero.
E é isso que eu quero primeiro pedir que O peça, antes de qualquer coisa: você deve ser eterna desde já. Teu corpo, teu veículo, jamais, em hipótese alguma, poderá voltar à terra. Terás que ser você para sempre. Porque é isso que você é. Assim, do jeito que tantas vezes me fez sorrir... Não posso negar o corpo. Ele precisa ser justo contigo, já que Ele nunca foi justo... Sinto que vou enlouquecer... pra esquecer... por que ainda estou...
Mas afinal, do que se trata escrever tudo isso, se eu sei que Ele não vai me responder? Ele sabe que estou machucado. Machucado a ponto de dizê-lo o que foi motivo pra tudo isso. Dizer por uma eternidade de dúvida que na verdade não se pode obrigar ninguém a amar, é preciso aceitar que nem todos podem nos amar e deixar que eles vivam sem condenações. Sem fardos. Escrever se trata de provar que eu posso estar correto sobre esse amor forçado por um medo, um medo do desconhecido. Nós o criamos, pelo medo do nada que pode ser o lado de lá. Você, meu amor, não temia... Não merecia estar aí, da maneira como te vejo agora. Você o conhecia, sabia quem Ele era. Quem Ele era de verdade... Espero que ao ler essas palavras, teu corpo esteja perfeito, que não existam as marcas dela... dela que sussurra no ouvido dos filhos “Eu vim...” E os leva...
Certa vez você me disse que leria uma carta que eu te escrevesse até em outra vida, se eu sempre te escrevesse uma. Você sempre amou minhas cartas... Lembro que imaginei na ocasião, como uma possibilidade tão possível como ser atingido por um raio, você deitada com a tampa do caixão ao seu lado, eu pondo em suas mãos uma carta, com palavras que só você e eu saberíamos, um segredo nosso pra você guardar no lado de lá... Isso me trouxe calafrios. Eu imaginei teus cabelos brancos... não assim tão nova e cheia de planos... E eu te pedi que fizesse isso por mim, porque eu iria primeiro, tinha certeza, só que no vazio que julguei planar para o sempre, talvez não tivesse sequer olhos pra ler. Como seria capaz de ler se nem sabia se estaria lá? Eram conversas nossas, mas da forma que sei que está lendo essas frases agora mesmo... Quero que saiba que estava certa. Eu errei, mas errei porque quis ser forte. Leia essa carta e exista... Seja eterna... Mas faça-me uma pergunta a Ele, apenas uma, e tente me fazer entender: “Existe um fim?”
Aqui está a carta. Eu não sei mais o que poderia estar nela, sei menos do que pensei e muito menos do que acho saber, eu mudei depois que te vi assim... Algo em mim está aí, contigo, algo que só nós dois sabemos, algo só nosso, algo que não sei como escrever. Poderia escrever milhares de folhas mas algo parece fazer questão de me lembrar que eu ainda tenho dúvidas, preciso economizar palavras e tempo pra compensar minha descrença.
Se não nos encontrarmos nessa tua nova forma, não fique triste. É difícil pensar que nem todos merecem o que pra ti sempre foi o justo, você merece ser eterna. Foi apenas uma mudança boa, mas pra mim, eu precisava me extinguir. Deixar de ser... Mas saiba que enquanto fui, você foi como minha própria vida, te perdendo, eu me perdi... inevitavelmente...
Teu amor e teu partir foram meu início... e meu meio fim... não fique triste...
Eu sei que pra ti, o eterno ainda habita em mim. No que sempre terei de ti...Vida.
Com amor...
Fevereiro de 1988.”
“Este manuscrito foi encontrado na Primeira Terra durante exumações num antigo cemitério onde os Primeiros deixavam seus mortos. A tampa de um caixão abriu por acidente e todos os Desbravadores ficaram perplexos ao ver que o corpo de uma bela mulher, do Passado, uma ‘Descendente dos Céus’, repousava intacto, perfeito, como se dormisse... A carta entre as mãos...”
‘Vamos acorda-la. Precisamos avisá-la que Ele voltou. Ela é a única que sobrou’.
Livro Sagrado das “Crônicas dos Esquecidos”, Ano de 3988.