Ora (direis) sentir amor!
"Sou um coração batendo no mundo."
Clarice Lispector
Com a chegada do sol o peso do dia desabou sobre ele logo que cruzou o portão. Na minúscula varanda, o velho cachorro não abanava o rabo. Soube instantaneamente que havia algo errado no ar. De dentro da casa chegava um leve cheiro de xampu. Forçou a maçaneta, mas a porta estava trancada.
-Abra a porta, amor!
-Peraí, por favor!
O grito veio rouco, choroso. O rosto cansado de quem não dormira à noite assomou-se à porta entreaberta. Ele adiantou um passo e tentou abraçá-la. Ela desviou-se do abraço como quem desvia de um cruzado de direita.
-O que tá acontecendo, querida?
-Tô cansada, apenas!
Disse e virou as costas. Saiu corcunda como se carregasse o fardo do mundo nos ombros. Ele ficou mastigando incertezas como quem mastiga bom bril. Se era porque chegava tarde do trabalho, então iria procurar outro, disse solícito.
-Se quiser, eu te ajudo a cuidar da mãe!
-E nós vamos viver da aposentadoria dela?
Sabia que não. Que ia conseguir um trabalho diurno e à noite ajudaria a mulher na vigília. A mulher o encarava e limpava o nariz com as costas da mão. Desculpava o filho que não tinham.
-Sabia que eu sinto raiva de ter raiva de você?
-Só sei o que você me fala.
Puxou uma cadeira para ela. Sentou-se à frente e a olhou ternamente. Viu no seu olhar solidão, não despedida. Limpou uma lágrima teimosa e inclinando-se na direção dela, ofereceu os braços. Ela os aceitou como quem aceita um presente: feliz e grata.
-O que vai ser, então?
-Vai ser do nosso jeito, meu amor!
Levantou-se da cadeira com a suavidade da brisa. Tocou-lhe no ombro mostrando as malas prontas e mudas atrás da porta. Sorriram mutuamente. Ela, desculpando-se, pediu que o ajudasse a desfazê-las. Ele retirava peça por peça como quem despetala rosas. Com lágrimas nos olhos dizia e ela completava:
-Bem me quer, mal-me-quer!
-Te quero bem!
Às sete da noite, estavam sentados vendo tv, quando ouviram o conhecido e angustiante ronco da mãe. Largaram a metade da pizza e a Coca-cola no fim. Correram os dois para o quarto dos fundos. O cão ladrava no quintal anunciando a longa noite que começaria.