Isso foi um erro

Eram quase dez da noite quando Fernando Alenquer entrou no Departamento de Marketing de sua empresa, vindo de uma festa, na qual ficara pouco mais de uma hora. Avisara ao motorista que não iria demorar; era só o tempo de pegar um kit de imprensa da nova campanha da Blossom D'Or. Oh, ele poderia esperar até de manhã, já que uma cópia do material seria enviado para o seu escritório, na cobertura do edifício, mas uma espécie de sexto sentido o fizera parar ali a caminho de casa, e ele costumava dar atenção aos seus instintos. Eles já o haviam livrado de situações problemáticas antes... embora, pela primeira vez, talvez estivessem prestes a lhe colocar numa.

Pelo adiantado da hora, não esperava encontrar mais ninguém ali. E nem precisaria de ajuda, já que sabia onde era guardado o material de divulgação. Mas havia alguém trabalhando numa das estações gráficas. Alguém que ele não conhecia. Uma mulher. Mesmo sentada, de costas para ele, pode perceber que era alta. Cabelo castanho-escuro, preso num rabo de cavalo. Ouvindo música, muito provavelmente, com fones de ouvido brancos. Na tela à frente dela, a imagem de um dos perfumes da linha Blossom D'Or. Decidido a não assustar a sua colaboradora compulsiva, ele deu a volta cautelosamente nas baias vazias, de modo a abordá-la de frente. Ao aproximar-se, viu que ela arregalou os olhos, assustada. A expressão mudou para surpresa e alívio, quase que imediatamente. Ela ergueu-se. Era alta sim, talvez uns bons 5 cm acima dele, que media 1,80 m - e estava de sandálias rasteiras. Ele sorriu.

- Boa noite! Desculpe, não pretendia assustá-la!

- Boa noite, senhor Alenquer... não imaginei que viria aqui à essa hora!

"Então me conhece", ponderou Fernando. "Mas claro que conhece. Você é o dono da empresa!"

Ela não era exatamente bonita, avaliou rapidamente. Morena, magra, esguia. Talvez 28, 30 anos de idade. Voz extremamente agradável, de alguém que se dedica ao canto ou que teve aulas de fonoaudiologia. Os olhos eram castanhos e expressivos, num rosto oval delicado. Lábios cheios, rosados. Ah, e uma aliança na mão esquerda.

- Você está em vantagem - brincou ele, estendendo a mão direita. - Sabe quem eu sou e não sei quem é... perdão.

Ela estendeu a mão e trocaram um aperto breve, mas que fez passar pelo corpo dele uma sensação elétrica. "Como seria tocar todo o corpo dela", divagou, "com todas aquelas milhares de terminações nervosas"?

- Eu sou Roberta Vidal, assistente de arte - apresentou-se ela, parecendo ligeiramente embaraçada, como se tivesse captado pela pele o que ele pensara dela. - Comecei na sua empresa semana passada... e estou trabalhando na campanha da Blossom D'Or.

Ele inclinou-se e aspirou o perfume do pescoço longo e branco dela. "Pescoço de Modigliani", determinou.

- E usando o "Nuage D'Amour" nº 2... excelente escolha, Roberta!

Ela corou, entre embaraçada e feliz.

- Além de ser da casa, eu já o uso há muitos anos, senhor Alenquer.

- Fernando - corrigiu ele em tom brincalhão. - Meus colaboradores me chamam pelo primeiro nome. Alenquer é somente para meus concorrentes. E o que está fazendo aqui até tão tarde, Roberta?

Ela baixou os olhos, o que lhe pareceu menos um sinal de timidez e muito mais de nobreza de espírito.

- Peço desculpas, sen... Fernando. A campanha está pronta, mas eu pensei cá comigo que gostaria de propor algumas alterações na apresentação do "Fleur Sauvage".

- Você pensou? - Repetiu ele, em tom divertido.

- Sei que soa petulante da minha parte...

- Não, eu gostaria de ver a sua proposta. Gosto de gente com iniciativa!

E puxou uma cadeira de rodízios para sentar-se ao lado dela.

- Me mostre! - Exclamou.

Ela fechou algumas janelas na tela do computador e abriu um programa de apresentação gráfica. Havia imagens de cartazes conceituais dos perfumes e produtos de maquiagem "Fleur Sauvage", num belo tom de ouro velho contra fundos vermelhos adamascados. Tudo muito rico e quente, sensual até.

- Você desenvolveu isso, sozinha? - Questionou ele, mão no queixo.

- Sim, se... Fernando.

- Ficou muito bom!

E olhando para o relógio de pulso, um despretencioso Movado preto:

- Mas, está tarde! Seu marido não sente a sua falta, Roberta?

Ela pareceu espantar-se com a observação.

- Meu marido... ele faz pós-graduação à noite... provavelmente, vou chegar antes dele em casa, Fernando.

- Meu carro está na garagem. Eu deixo você em casa.

- Imagina! Eu moro do outro lado da cidade... vou chamar um Uber, não se preocupe!

- Só assim vou saber onde mora - insistiu ele. - E amanhã às 11 h, quero que vá ao meu escritório com uma cópia das suas sugestões, impressas e em DVD.

- Fernando? - Ela o encarou, atônita.

- Desligue o seu terminal - atalhou ele, apontando para o computador. E, erguendo-se:

- Estou te esperando na garagem. A Mercedes-Benz prateada... aliás, o único carro que vai ver lá.

- Eu não demoro - respondeu ela em tom resignado.

* * *

Na manhã seguinte, quando Sylvia Junqueira, a gerente de Recursos Humanos, entrou no amplo escritório de Alenquer sobraçando uma pasta de arquivo, foi saudada por ele de forma alegre e pouco protocolar:

- Senti cheiro de sangue!

Sylvia, uma loura esbelta, vestida com um elegante tailleur cinza-pérola e sapatos de salto pretos, olhou-o com expressão azeda e só falou ao parar em frente à grande escrivaninha semicircular:

- Eu sequer estou menstruada.

E estendeu-lhe a pasta, que ele recebeu com um sorriso, fazendo-lhe sinal para que tomasse assento à sua frente.

- Você está cometendo um erro - comentou Sylvia, ao sentar-se.

- Por quê? - Indagou ele, cabeça baixa, folheando os papéis dentro da pasta.

- Roberta Vidal é uma mulher... e uma mulher casada. Não uma dessas garotas, estagiárias, que você costuma pegar e descartar depois de usar meia dúzia de vezes.

- Vinte e nove anos... - leu ele no dossiê. E erguendo os olhos para a gerente:

- Bom, eu e você estamos com 35. Devemos ser mais experientes do que ela, concorda?

Sylvia suspirou.

- Não me faça me sentir mais cafetina sua do que sou, Fernando.

- Cafetina! Que termo horrível! - Ironizou ele. - Prefiro muito mais aquela outra sua imagem, a do tubarão...

- Você é o tubarão - aquiesceu ela.

- E você é o peixe-piloto, não é, Sylvia? - Fernando parecia divertir-se com a situação. - E acaba pegando uma sobra aqui e ali, certo?

Sylvia mordeu os lábios, irritada, mas não revidou.

- Já teve algum relacionamento com uma mulher casada, Sylvia?

- Não - retrucou ela, secamente.

- É mais complicado? - Insistiu ele.

- Com tanta gente livre no mundo, por que eu iria fazer uma opção idiota dessas? - Disparou ela.

Fernando apoiou os cotovelos na escrivaninha e entrecruzou os dedos.

- Você a conhece. O que acha dela? Bonita?

- Ela tem porte... talvez seja o que lhe tenha chamado a atenção - ponderou Sylvia. - Não parece alguém que vá se derreter por você apenas porque é o todo-poderoso dono da Blossom D'Or.

- Tive essa impressão - concordou ele. - Ontem à noite, quando fui deixá-la em casa.

Sylvia contraiu os maxilares.

- Não perdeu tempo, não é?

Ele fez um gesto, como quem espanta uma mosca.

- Foi uma coincidência, nada planejado. Até ontem, eu sequer sabia que ela existia... centenas de empregados, você sabe.

- Sim, eu sei... - E com um brilho de curiosidade no olhar:

- E o que VOCÊ achou dela?

- Ela usa "Nuage D'Amour"... fiquei imaginando-a nua e descabelada debaixo de mim, o suor se misturando ao perfume...

A gerente encarou-o em silêncio. Finalmente, comentou:

- É uma imagem forte.

- Quero torná-la real - retrucou ele.

* * *

Na hora marcada, Roberta Vidal adentrou o escritório de Fernando Alenquer trazendo seu portfólio. Ele ergueu-se para cumprimentá-la com um aperto firme de mãos. Sentaram-se frente à frente.

- Magnífico trabalho! - Exclamou ele após folhear o portfólio.

- Grata, Fernando.

- Na verdade, gostei tanto, que vou sugerir ao gerente de Marketing que lhe dê uma promoção... para a chefia do Desenvolvimento!

Ela o olhou com olhos arregalados.

- Eu... nem sei o que dizer! Chefia do Desenvolvimento? Será que eu estou à altura das suas expectativas, Fernando? Você mal me conhece!

Ele abriu os braços.

- Exatamente por isso precisaremos trabalhar em conjunto, para que você absorva a visão que pretendo imprimir aos produtos da empresa.

- Bom... isso é totalmente inesperado. Quando me disse para vir aqui, eu jamais poderia esperar...

Ele cortou o discurso dela.

- Podemos discutir isso durante o almoço. Você almoça comigo, não é?

Ela ergueu as sobrancelhas.

- Sim... claro.

- Então, me aguarde no estacionamento em meia hora - concluiu ele.

Depois que Roberta saiu, Fernando ligou para Sylvia:

- Vou almoçar com ela em poucos minutos. Descobriu algo que eu possa usar?

Do outro lado da linha, a gerente pareceu hesitar.

- Você já sabe que Roberta é evangélica, não é? E de uma corrente trinitariana?

- Traduza isso pra mim - atalhou ele.

- A denominação dela segue a versão da Bíblia do Rei Jaime, que é considerada a mais fiel ao texto grego original do Novo Testamento.

- E daí?

A gerente deu uma risadinha.

- É só uma piada, mas talvez possa encaixar o que eu vou lhe dizer na conversa... para quebrar o gelo...

Fernando ouviu atentamente, tamborilando na escrivaninha. Ao fim da explicação, seu rosto iluminou-se.

- Ainda existem dessas à venda?

- Não faço ideia, mas...

- Pois descubra! - Retrucou ele.

E desligou.

* * *

Um mês se passou.

Fernando cercou Roberta de todos os cuidados e atenções, sem nunca deixar transparecer suas reais intenções a respeito dela. Finalmente, após receber a encomenda que encarregara Sylvia de providenciar, aguardou até o fim do expediente e convocou Roberta ao escritório. Ela chegou solícita e feliz, num vestido leve de verão.

- Essa surpresa que quer me mostrar... é da nova campanha? - Indagou ela, sorridente.

- Não! É algo que ficou na minha cabeça desde a nossa primeira conversa no carro, quando te levei em casa - respondeu ele, erguendo-se da mesa e conduzindo-a pela mão até um mostruário de vidro e aço que mandara colocar numa das laterais da sala. Ela inclinou-se para ver o que estava em exposição e depois lançou-lhe um olhar admirado.

- Eu nunca imaginei que você tivesse um exemplar original da Bíblia do Rei Jaime...

- Comprei-a por sua causa - disse ele, sem soltar a mão dela.

- E esta é a edição...

- De 1631. Uma das poucas que ainda restam.

Ela o olhou no fundo dos olhos, com um misto de terror e excitação. Ela sabia. Claro que sabia. Ele deixara a bíblia propositalmente aberta em Êxodo 20.

Ali, no versículo 14, um erro tipográfico havia suprimido o "não" antes de "adulterarás".

- [17-01-2018]