A Peste

-Como bem sabes, essa espécie de rosa floresce somente na nossa região e apenas a cada três anos, será o sinal de quando você estiver voltando pra mim...Não sei se aguentarei tanto tempo longe...

-Eu conseguirei, você também vai, não se preocupe meu amor, três anos passarão depressa.

-Leve uma muda e plante, quando lá chegar.

-Não será preciso, talvez eu me forme antes dos três anos e aí estarei voando de volta para os seus braços...

-Não importa, leve Guto, é um sinal de nosso amor.

-Se faz questão..., Eu levo, não briguemos por isso.

Para melhor situar o leitor devemos dizer que tal cena ocorre num vilarejo remoto, no início do século XIX, o rapaz chamado Augusto quer cursar medicina na capital, o lugar onde moram, esquecidos de Deus e do mundo, sofre continuamente com uma peste incurável, que vinha em ciclos, surgia de repente, fazia várias vítimas e depois ia embora sem explicação, esta última havia levado sua mãe Dona Marina, a população da vila bancaria seus estudos, o diálogo acima, portanto era a despedida do casal de namorados. Cresceram juntos e com eles o amor que sentiam um pelo outro, ela chamava-se Isabel, ao contrário da vila, ela nunca aprovara a ideia de seu amado ir embora, sacrificar-se por todos, muitos ali não mereciam, queria ir embora com ele, mas ninguém da sua família gostava dele, um bando de ingratos, pensava.

Mas não nos alonguemos, deixemo-lo partir.

Contudo, um rio nunca segue seu percurso tranquilo, sem percalços, lá chegando, dispersou todo o dinheiro, numa vida desregrada, repleta de novos vícios, rapidamente esquecera Isabel e com ela todas as juras de amor que fizera, os três anos passaram rápido. Apesar da falta de cuidados, a roseira que havia plantado nos fundos da casa, quando chegara do seu povoado, começara já a abrir os primeiros botões...

Certo dia, ele estava numa repartição pública, cuidando dos papéis referentes ao seu casamento com Ana Joaquina, uma ex-cortesã, enquanto espera, encontra no jornal uma notícia que lhe chama a atenção.

Praga mortífera continua a atingir Roseiral da Serra

Depois de lê-la, jogou o jornal pro lado e pensou, aqui estou a salvo, se estivesse lá ainda, talvez já estaria morto, foi boa a ideia de pegar o dinheiro daqueles cretinos, jamais trocaria o seu conforto, pra voltar lá, ainda mais pra ajudar aqueles roceiros.

O atendente voltou depois dizendo que ele precisava de mais um documento referente ao seu endereço, algo que comprovasse onde vivia.

-Será preciso eu voltar em casa, que maçada, pensou, pois morava no Estácio. Teve que voltar a pé, pois o último dinheiro que tinha havia gasto na banca de jogo.

A essa hora da tarde, poucas pessoas eram encontradas nas ruas, estavam refrescando-se nas varandas de suas casas, nesses momentos só os escravos trabalhavam, ainda mais naquele sol a pino.

Enquanto andava, ia raciocinando, o casamento ser-lhe-ia muito vantajoso, Ana tinha muitas propriedades, aluguéis, escravos, seu futuro estava garantido. Ele não tinha muito é verdade, mas tinha a beleza, o vigor físico, ambas as partes sairiam lucrando.

Chegou em casa e pôs-se a procurar o tal papel, mas não conseguia encontrar, depois lembrou que poderia estar no baú, tirou-o de debaixo da cama e o levou ao fundo da casa, pra melhor examiná-lo à luz do sol, achou-o, era aquele, mas não voltaria ao tabelião, deixaria pra manhã.

Só queria ficar ali um pouco mais e sentir aquele perfume de rosas...

Só então divisou no fundo do quintal a planta, com uma meia dúzia de flores, aproximou-se e iria colher uma delas, mas de repente, tudo lhe veio à mente, a época de quando chegou do seu povoado e plantara ali aquela espécie de rosa, que tanto Isabel insistira que ele levasse, como ela estaria? Não importa, como era pueril pensava, não viu de bom grado ter aquela roseira em seu quintal, Ana Joaquina inquiriria a respeito da sua origem, e por fim acabar-lhe-ia contando.

Era melhor destruir aquela planta, e foi o que fez, deu um pouco de trabalho, as raízes já estavam bem fundas, ficou um tanto extenuado, mas finalmente conseguiu, seria uma pena, no entanto que aquelas rosas que demoraram tanto pra florescer, ficassem por aí jogadas ao léu. Daria um belo buquê pensou. Retirou uma por uma, porém feriu um dos dedos com o espinho da última rosa. Espremeu o dedo polegar com o indicador ferido do qual brotou uma gorda gota de sangue, onde se limpar? Uhh...! Por que não...Uma das pétalas das rosas não era tão vermelha quanta as outras...

Ao voltar para seu quarto, sentiu subitamente que a cabeça girava, as vistas começaram a embaciar, não conseguia entender, estava a pouco tão bem, achou melhor enviar uma missiva a Joaquina por meio do Juvêncio um negrinho alforriado que emprestava os seus serviços, geralmente como moleque de recados.

-Ainda bem que o vi saindo da venda do seu Amaral...

-Fui levar dois ...

-Não importa, quero que vá rápido e entregue esse bilhete na Rua do Lavradio, você conhece a dama, já há viu comigo, lembra-se?

-Lembro sim Sinhô pode dexá...

Mas Ana não pôde comparecer àquela noite, a razão era que havia ido visitar uma amiga que passaria uma temporada em Mangaratiba, só leu o bilhete pela manhã:

“Querida, por favor, venha depressa, estou mal, estou queimando, uma febre que não passa, venha me servir de enfermeira. Restabelecerei nos teus braços”.

Teu sempre.

‘Guto’.

Rapidamente ela mandou aprontar um tílburi e levou sua aia de confiança consigo, antes passou na casa do Dr. Almeida, um médico respeitado na corte, famoso por curar moléstias tropicais.

Mas o doente estava nas últimas, respirava com dificuldades.

Depois de o examinar detidamente, o médico fez um diagnóstico com base no que observara até então, disse para Joaquina à parte:

-Minha querida sinto muito, mas não posso curá-lo, sem antes saber o que o deixou neste estado...

-Como o senhor não pode fazer nada? O senhor é o médico, e pelo que sei o mais famoso da corte!

-Por eu ser o mais importante nessas paragens, é que posso assegurar, enquanto não souber o que causou essa moléstia, eu não posso debelar esse mal.

-O que eu farei?

-Passe essa noite com ele e tente arrancar o máximo de informações possível, onde esteve, com quem esteve, lembre-se, saber a origem do mal é o mais importante agora.

E assim foi, entre uma compressa e outra, que eram trocadas o tempo todo, ele balbuciou nomes e lugares desconexos, Isabel era o nome que mais ouvia, depois um tal de Roseiral da Serra. Esse lugar ela se lembrava, ele já havia dito, era onde nascera.

Mas aquele nome feminino era a primeira vez, talvez uma namoradinha que havia deixado por lá, não era outra coisa, pensou.

Pela manhã a febre baixara um pouco, mas ele continuava inconsciente, pela tarde o médico passou para visitar o paciente e o encontrou em pior estado, delirava, não falava coisa com coisa.

-Onde quer que ele tenha pegado esse mal, foi aqui nessa cidade.

-O Sr nunca viu nada parecido, posso ter esperanças?

-Lamento minha cara, serei franco, nunca vi nada parecido com isso, exceto..., Os sintomas são bem parecidos, mas não pode ser, essa cidadezinha fica tão longe daqui, não, não é, esqueça...

-Que cidadezinha?

-Roseiral da Serra...aliás não é nem uma cidadezinha é uma vila, um arraial, ouviu alguma coisa nesse sentido, enquanto ele delirava?

-Ouvi sim, mas não entendo, ele saiu desse lugar há mais de três anos, será que a doença ficou incubada durante todo este tempo, é possível isso?

Não creio, ademais ela já teria se manifestado, não consigo chegar a uma conclusão, o caso dele é isolado.

-Mas o Sr. não disse, que os sintomas eram muito similares?

-É isso que eu não consigo entender, os indícios do surto são muito parecidos.

-Posso ter esperanças doutor?

-O melhor a fazer é deixar que o próprio corpo se defenda, a natureza é sábia minha cara, muitos males vem e vão sem a menor explicação.

Com isso o médico guardou os frascos de remédio que não usaria e preparou-se para sair. Não sem antes recomendar a Rosalinda que fizesse as aplicações de emplastos a cada duas horas. Despediu-se, prometendo voltar no dia seguinte.

Logo ao alvorecer o médico faz a sua visita à casa de Augusto, queria dirimir todas as suas suspeitas.

Mas a preocupação de Joaquina é maior, ela o interpele primeiro:

-Algum perigo, desse mal chegar aqui doutor que medidas o império está tomando, para que esse mal não se espalhe?

-Foram destacados dois regimentos, o vilarejo está todo sob quarentena, é uma preocupação que você não precisa ter.

-...Mas e sua desconfiança, doutor?

-Tomara a Deus que não seja esse o caso. Ouvi dizer que muitos já morreram.

-Mas em quanto tempo dura a manifestação da doença?

-A maioria não resiste a três dias de cama, logo vem a óbito, é um mal que ninguém sabe a sua origem, bem, mas o melhor a fazer nesses casos é esperar e rezar muito!

-O S.r. não pode fazer mais nada?

-Fiz tudo que estava em meu poder, como eu disse agora é esperar...

E foi isso o que Ana Joaquina fez, esperou, esperou, aguardou ao pé da cama de Augusto um milagre que não veio, na terceira noite segurando sua mão ele balbuciou as últimas palavras, com o braço trêmulo apontou um buquê de rosas em um vaso na escrivaninha;

-Essas rosas são, são...Pigarreou, deu um longo suspiro e não conseguiu dizer mais nada, a cabeça tombou pra traz, os olhos inertes, sem vida.

Joaquina deu um grito terrível, lancinante, desesperado, estava só, sem o único homem que amou verdadeiramente em toda vida.

Foi até o buquê de rosas que estava no vaso sobre a escrivaninha, todas muito murchas, uma um pouco menos, parecia ter sido colhida a pouco, pegou-a, lembrando das suas últimas palavras pronunciadas, disse soluçando;

-Que ternura pensar em mim no último momento!

Em seguida, mergulhou o nariz nas pétalas daquela rosa de um vermelho tão rutilante, tão rubro, tão escarlate. Aspirou-a então profundamente como quem quisesse retirar dela todo o seu perfume de uma única vez.

fim

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 01/12/2017
Código do texto: T6187527
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