Sorte no amor

Tenho vontade de escrever sobre algo que vivi e que, até hoje, não coloquei no papel por falta de oportunidade, mas creio que chegou a ocasião. Desde muito menino ouvia mamãe contar as histórias encantadas que nos faziam dormir e deixar, finalmente, o resto das horas da noite para ela e papai. Eles pouco se viam por causa das diferenças de suas funções. Papai era administrador de fazendas; ganhava muito dinheiro com isto. E mamãe era professora de um colégio interno. Dar aulas, viver rodeada de crianças era sua maior felicidade. A de papai seria que ela abandonasse sua carreira e se dedicasse a ele exclusivamente, mas nunca chegou a concretizar esse sonho. Não era o dinheiro que fazia mamãe sair de casa antes que o céu surgisse no horizonte e só retornar muito depois que ele se escondesse atrás das nuvens do fim de tarde. Éramos um casal de filhos, rodeados por coisas belas e luxuosas. Se a riqueza fosse o principal elemento da felicidade, então, de nada mais precisaríamos, pois não faltava a mim e nem a minha querida irmã, de quem tenho enorme saudade, tudo aquilo que se considera riqueza, a meta final de todo esforço humano; vista pelo lado material da existência.

Cresci, levando para a adolescência as melhores impressões de uma família. Como não tive, na realidade, uma família, o melhor da minha concepção procurava passar para a sociedade. A inocência, a falta de maturidade foi o que me impediu de compreender os atos de mamãe. Achava que não era amor o sentimento dela para conosco. Tive um pai ausente porque a dedicação ao trabalho, ao acúmulo de riquezas tinha lugar prioritário no seio de minha família. No entanto, para que serviu? Minha mãe cansou-se daquela vida; acabou depositando em mim e em minha irmãzinha todo o desgosto e amargura. Antes de completar dezoito anos de idade eu, que já vinha estudando em colégio interno, fui mandado para ainda mais longe por exigência da minha formação superior. Foi aí que comecei a despertar para a vida e compreender as atitudes de meus pais que antes eu não entendia. Passei a ser como um estranho em minha própria família, pois era tão raro ir em casa que minha ausência já não fazia mais diferença, logo, não havia mais saudade; pelo menos eu pensava dessa forma.

Quero ir direto ao assunto para não cansar o leitor com detalhes sem importância. Ao contrário do que ocorreu comigo, minha irmã permaneceu em casa até uma idade avançada se comparada com a maioria dos filhos que logo se torna independente. Mas eu toquei minha vida e fui morar no estrangeiro; o que me obrigou a isto foi a missão de paz no Haiti. Foram dois anos de total solidão; não sabia me comunicar em outra língua e a cidade destruída nada nos oferecia além de trabalho e incerteza quanto ao futuro. Celina, minha irmã, através de suas cartas que me chegavam com muita dificuldade às mãos, era quem contribuía para os meus raros momentos de felicidade. Nossos acampamentos improvisados, mal higienizados e sem o mínimo de conforto mudavam constantemente de vila ou de cidade e muitas das cartas de Celina caíram por engano nas mãos de outros soldados e nunca chegaram a mim ou chegaram tardiamente. A última que eu lera dava-me conta de um namoro, desta vez com promessa séria de casamento. Parecia-me impossível que alguém fosse se interessar por uma mulher tão destoante da realidade feminina. Digo isso porque Celina, por sinal, meiga e até bonita, não conhecia absolutamente nada a respeito da vida. Nunca houvera frequentado uma escola - só sabia ler e escrever porque aprendera com mamãe - e, viver em sociedade para ela era algo enfadonho e sem sentido. O ponto de vista de minha irmã fora uma das principais causas de sofrimento para os meus pais.

No entanto ela casou e eu recebi esta notícia com imensa alegria. Eu já estava de volta a minha terra e em pouco a visitaria em sua nova casa. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o marido de minha irmã era um militar; e que eu comandara no Havaí na condição de capitão no primeiro ano em que lá estive. Sua conduta exemplar e sua obediência marcaram-me profundamente. Já estava promovido a primeiro sargento, o que era mais do que merecido. Celina estava irreconhecível de tanta felicidade. Ela não queria me contar, mas descobri que o conheceu pelas cartas que me enviava. Uma, ao parar nas mãos dele, foi o suficiente para deflagrar o namoro. Por mais que tentasse não consegui dissuadir o antigo subordinado de que não ficara em mim nenhuma espécie de rancor ou indignação pelo que ele fizera. Afinal, tudo ficou no passado e não havia razão para puni-lo nem para que me pedisse desculpas. Foi uma causa mais do que justa que resultou numa bela união; eu estava feliz com a felicidade de minha irmã. Senti que o sentimento de vergonha não o abandonaria facilmente, mas deixei de me preocupar com isto dali para frente.

Outra razão para não frustrar a felicidade dos dois era a gravidez de minha irmã; em poucos meses seria mamãe pela primeira vez.

Passei os meses seguintes na companhia de meus pais. Era triste constatar que somente agora, no fim da vida, eles pareciam desfrutar um pouco de felicidade; parece que essa lhes havia sido negada. Somente a velhice para sossegar meu pai e fazê-lo finalmente compreender o quanto mamãe o amava. Não consigo, até hoje, encontrar as razões da minha própria atitude, mas aos quarenta e seis anos ainda me via solteiro e sem a mínima intenção de assumir um compromisso de relacionamento ao lado de uma mulher. Com meus pais no fim da vida, todos os meus planos resumiam-se a cuidar deles, pois sentia que se amavam verdadeiramente. No entanto, no auge da felicidade, quando compartilhar com eles das constantes viagens que faziam representava a minha principal alegria; quando o amor que eu pensava inexistente passou a permear cada instante das nossas vidas, papai deixou esse mundo. Mamãe não suportou por muito tempo a sua ausência e partiu em seguida. Como sempre aconteceu em vida, não seria diferente agora; ela o encontraria desta vez para a felicidade eterna.

Minha vida tomou um rumo completamente diferente quando me vi sozinho no mundo. Como voltei a morar em nossa antiga e enorme casa, a solidão com frequência me atacava. A única solução foi preencher meus dias com afazeres a fim de não deixar que o tédio me dominasse. Com a vinda de Celina consegui retomar minha antiga alegria. Era como se vivêssemos novamente o passado de nossa infância e adolescência. Mas minha irmã estava sofrendo; embora eu não visse motivo para uma decisão tão drástica por parte do seu ex marido, foi exatamente o que fez: abandonou de uma hora para outra, mulher e filha, desaparecendo sem deixar a mínima pista do seu paradeiro. O que eu desconfiava Celina acabou revelando-me; a vergonha de continuar nos encarando depois de sabermos que violara nossas correspondências fê-lo abdicar da própria felicidade e, por um ato de puro egoísmo, acabou ferindo duas pessoas, pois o sofrimento de minha pequena sobrinha não era menor do que o da mãe. A menina, a despeito de crescer sem a companhia de um pai, passou a ser o orgulho em nossa casa, pois sua inteligência superava a de qualquer criança na sua idade. Mostrou-se uma sumidade já nos primeiros anos escolares. Os professores ficavam perplexos com a facilidade e rapidez com que aprendia qualquer matéria. Aos treze anos conversava fluentemente em inglês, francês e espanhol, e tocava violão com a maestria de um virtuose. Celina matriculou-a em um conservatório para músicos e dois anos mais tarde Tatinha, como a chamávamos, apresentava-se para grandes plateias, despertando a atenção de todo o meio musical.

Vendo minha atenção por Tatinha e meu amor que quase se igualava ao de um pai verdadeiro e que, sob minha proteção, a felicidade da menina estaria garantida, Celina foi aos poucos se desligando do nosso convívio. Tornou-se uma irmã totalmente estranha; nada mais tinha a ver com aquela criatura frágil e dependente que eu conhecera no passado. Parece que o fracasso amoroso a atingira de tal forma que a fez desmoronar com espantosa velocidade. Ao pressentir que a filha, a quem muito amava, não ficaria desprotegida, colocou o pé no mundo. Suas vindas à casa eram mais e mais escassas. E cada vez que aparecia, o aspecto e a aparência não condiziam com o que fora minha irmã. Cada vez que surgia, o que levava meses, trazia um namorado diferente. Não passávamos de velhos conhecidos. Eu, um amigo do passado e a filha, tudo menos uma filha porque já há muito não a reconhecia como sendo sua mãe. Quando, em uma de suas visitas, chegou bêbada e maltrapilha, não suportei a cena e a chamei para um particular. Tatinha retirara-se para o quarto, triste e cabisbaixa e eu pressenti que chorava.

- Por que nos maltrata desse jeito; o que está fazendo? Aja como uma pessoa normal que você sempre foi. Ou então nos deixe de vez, mas faça-o para sempre. Não suporto ver o sofrimento de minha sobrinha.

Não vale a pena descrever aqui as palavras que ouvi de minha irmã como resposta às minhas súplicas. Confesso que tamanha era a minha ira naquele momento, diante das asneiras que proferiu, que, por muito pouco não contive o ímpeto de enchê-la de bofetões e expulsá-la para que nunca mais retornasse e, caso o fizesse, não mais a receberíamos.

Parece que meu desejo, o qual na verdade era um desejo falso, pois jamais me permitiria maltratar minha irmã, acabou se concretizando e Celina desapareceu de nossas vidas.

Daquele dia em diante uma transformação operou-se em minha vida e na de minha sobrinha que quase podíamos dizer que a felicidade batia a nossa porta. Aos dezoito anos conheceu um belo e educado rapaz com quem havia se apresentado em um dos frequentes concertos que fazia. Não levou um ano para que eu penetrasse de braços dados com ela, pelo hall da igreja do nosso bairro e a entregasse ao seu futuro marido. Na certeza de que uma grande união estaria naquele momento se iniciando.

Mais uma vez a solidão se fez presente, como uma sina de que eu jamais conseguiria me libertar. Tentei vários relacionamentos, mas nenhum chegava às vias de fato de uma união estável. Meio século de existência já havia passado por mim. Nunca acreditei em maus presságios, carmas, maldiçoes ou coisas do gênero. Por que então as relações amorosas de minha família não conduziam a um final feliz ou pelo menos a uma vivência estável dentro do que é considerado normal?

Jamais soube responder a essas indagações. Eu gostava de mulheres e tive muitas que se disseram por mim apaixonadas. Entretanto, todas as vezes que decidíamos partir para a seriedade, algo dava errado e o compromisso não acontecia. Isso me deixava inseguro e eu permanecia solteiro. Quando, acompanhando a estabilidade da rotina matrimonial de minha sobrinha, animei-me a uma nova tentativa, senti dentro de mim brilhar a luz da esperança. Renovei minha casa, meu espírito, marquei uma data e autorizei o enxoval. Seis meses de expectativa, de antecipação e orgulho. Minha geração estaria salva. Eu e minha sobrinha seríamos lembrados com satisfação e orgulho. A carta chegou dos Estados Unidos onde a carreira de Tatinha havia disparado cobrindo-a de glória e admiração. Ao fim de muitas linhas de demonstração de amor e gratidão ao tio querido, ela finalizou um tanto lacônica e sem arrependimentos. “A propósito, acabamos de nos separar e Luiz Augusto está de volta ao Brasil. O ciúme e a insegurança não permitiram que valorizasse minha carreira. Foi melhor assim. Minha arte em primeiro lugar. Quem quiser me amar tem também que amar o que faço.”

No dia seguinte, a decisão. Continuei namorando minha pretendente, mas sem alterar a nossa situação, tampouco os nossos endereços. Poderia mesmo ser melhor desse jeito do que partir para algo que não vinha dando certo na minha família. Coincidência o não, eu preferi não arriscar. Até que a sorte venha a mudar o rumo dos nossos destinos, vou continuar solteiro. Vamos ver se a arte da música transforma os sentimentos dos que se aproximarem de minha sobrinha com a intenção de amá-la. Sendo um amor verdadeiro, ele vai frutificar. Tomara que chegue logo outra carta com uma notícia auspiciosa. Porque o tempo passa. E eu pretendo ser pai, um pai casado e presente. E vovô, também. Por que não?

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 01/12/2017
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