Reicka faz movimentos como se ensaiasse a dança do ventre. Passa a mão de cima abaixo no freguês. Nem pula as partes vergonhosas. Faz por gosto... E recomenda no final da sessão: ‘Volte amanhã. Traga sete velas coloridas: verde, azul, lilás, branca, rosa, vermelha, e amarela. É preciso nova consulta e mais reza forte. Hoje não cabe mais. Traga também uma maçã vermelha; pau de canela; taça de vidro transparente; 21 cravinhos da índia;7 colheres de mel;7 moedas; um pedacinho de papel com seu nome escrito sete vezes, que é pra Santa Sara abençoar com a graça da prosperidade o gajão e sua família.”
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reicka Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda. E na dança, a cintura fina se movia sobre largo quadril como se seguisse o ritmo de alguma música cigana. Pausava a dança. E as mãos cumpridas Reicka deslizavam com suavidade por quase todo o corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reicka. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enviou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. João Velho com um revólver em punho, meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João Velho! Ainda nem dei meu recado!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de rei.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora! Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...”
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atendia pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre!
João Velho não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte.
Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco saiu por último, olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Ensanguentado. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo! Voltavam depois com a desculpa de vir buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
Nervoso, o tempo vinga presságios nos ponteiros do relógio. Ninguém se lembrou de consultar as horas. Só Onofre quando furou o ancião, cinco minutos passados da hora aprazada.
— Que fazer com o corpo?
— O patrão tá mandando reforço. Deve vir homem trazendo ferramenta para enterrar o defunto. Foi o combinado: se chegar um vaqueiro sozinho, a pé ou montado... Mesmo que não diga nada...
— Pururuca deve ter chegado lá sem fala!
— Nem que num fale. A presença dele é o recado.
Vinte homens robustos pararam antes da curva da estrada. Olharam para Reich estendido no chão. E seguiram. Dois velhos que antes estiveram reunidos com Reich, lentamente, se retiraram. Arribaram, sem pratear o velho gajo, descartado como uma folha seca caída ao chão.
— Vamo’imbora, João Velho! Nossa parte, já fizemos. Agora é com os enxadeiros.
Vespasiano chegou atrasado para a revoada de marimbondos. Depois dele, ouviu-se o tropel. Eram os cafuçus com enxadas e pás.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrela que o Vento Soprou.
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reicka Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda. E na dança, a cintura fina se movia sobre largo quadril como se seguisse o ritmo de alguma música cigana. Pausava a dança. E as mãos cumpridas Reicka deslizavam com suavidade por quase todo o corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reicka. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enviou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. João Velho com um revólver em punho, meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João Velho! Ainda nem dei meu recado!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de rei.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora! Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...”
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atendia pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre!
João Velho não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte.
Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco saiu por último, olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Ensanguentado. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo! Voltavam depois com a desculpa de vir buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
Nervoso, o tempo vinga presságios nos ponteiros do relógio. Ninguém se lembrou de consultar as horas. Só Onofre quando furou o ancião, cinco minutos passados da hora aprazada.
— Que fazer com o corpo?
— O patrão tá mandando reforço. Deve vir homem trazendo ferramenta para enterrar o defunto. Foi o combinado: se chegar um vaqueiro sozinho, a pé ou montado... Mesmo que não diga nada...
— Pururuca deve ter chegado lá sem fala!
— Nem que num fale. A presença dele é o recado.
Vinte homens robustos pararam antes da curva da estrada. Olharam para Reich estendido no chão. E seguiram. Dois velhos que antes estiveram reunidos com Reich, lentamente, se retiraram. Arribaram, sem pratear o velho gajo, descartado como uma folha seca caída ao chão.
— Vamo’imbora, João Velho! Nossa parte, já fizemos. Agora é com os enxadeiros.
Vespasiano chegou atrasado para a revoada de marimbondos. Depois dele, ouviu-se o tropel. Eram os cafuçus com enxadas e pás.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrela que o Vento Soprou.
Imagem: Internet
Adalberto Lima
Enviado por Adalberto Lima em 23/11/2017