O primeiro momento
“Você vai sonhar comigo hoje.”, ela dissera e a frase ecoou na mente dele.
Foi uma conversa de cerca de uma hora, um pouco menos talvez. Leve, despretensiosa. Uma conversa entre amigos que, já quase tomados pelo sono, apenas se aguentavam um minuto a mais pela simples ideia de que desligar o telefone parecia chato demais. Aquele silêncio do pós-conversa, do quarto vazio e solitário... não, eles preferiam o silêncio juntos e foi de fato o que logo aconteceu. Um longo período de silêncio, talvez um esperando que o outro falasse alguma coisa, talvez apenas partilhando o mesmo momento, não importava. Fez-se assim.
“Você vai sonhar comigo hoje”, foi o que ela tinha dito. Uma mistura de ameaça e divertimento para ela. Para ele uma onda intensa de pura eletricidade desconhecida. Ela narrara o tal do sonho, afirmara, garantira que assim seria e então veio o silêncio. Ele ainda sem saber ao certo o que acontecia, esperou. Ansioso por ela ter dormido ali, com o celular no ouvido, mas ansioso também para que ela ainda estivesse acordada.
“Você não me deu boa noite”, ele diria. E ela o mandaria cagar e pediria desculpas, só para repetir que estava com sono.
O fato é que ali no silêncio não fez diferença saber o que acontecia. Não fez diferença saber o que o outro estaria pensando, embora talvez um deles tivesse alguma pergunta a mais para ser feita. Mas nada falaram. Nem ele, mais ansioso, falou. Aqueles dois compactuaram a ideia de que seu silêncio ali juntos bastaria para a noite toda.
Agora passava de uma hora de conversa. Segundo a segundo, o indicador da ligação avançava. Ela tinha mesmo dormido. Ele refletia. Ela estava num universo de total escuridão ou talvez às portas de um sonho. Ele estava apenas ali, tentando ouvir a respiração dela entrecortada pelo sono. A qualidade da chamada não o ajudava nessa tarefa. Ou talvez o celular já tivesse caído há muito tempo e se afastado do ouvido dela. Talvez por isso, por esse pensamento, ele ousou falar algumas coisas que mais cedo não conseguira. Começou perguntando se ela ainda estava ali. A resposta nunca chegou. Um lado dele queria mesmo que ela não estivesse, enquanto o outro desejava que sim. Era um daqueles momentos que nós seres humanos tomamos um folego de coragem sem medir consequências e apenas falamos o que sentimos. Às vezes, como sabemos, é mais fácil falar que ama alguém enquanto o alguém não tem a possibilidade de nos ouvir. São aqueles instantes de fraqueza que os sentimentos promovem. São inofensivos, embora significativos. Ele riu de si mesmo pensando naquelas coisas e aproximou-se do celular.
Sabe que eu amo você, não é?, disse, Não é a primeira vez que digo, nem a última que tento demonstrar. É só algo que me veio na cabeça e pensei que mal tem? Me deixa feliz também, além de inquietar. Tô falando do desenho do teu rosto e do tom da voz. O trejeito no sorriso e a aparência insondável. Uma provocante onda de intenso frio, como estar diante do luar. E é tão, tão louco, que se você estivesse ouvindo agora você riria de mim como eu rio. Mas, ele não falou nada disso. Não em voz alta pelo menos, e nada tão organizado. Ele de fato riu de si mesmo e deixou escapar: “Eu amo você!”
Interessante é que a cena parece se repetir de uma maneira profunda, como um reflexo de um sonho que ele tinha tido; um que ele acordara e ficara indefinido. É ao mesmo tempo poesia e realidade, e elas se fundem como se fossem a mesma coisa. Quando ele disse que a amava uma última vez naquela noite, enquanto ela dormia com a mente desligada, muito, muito longe dali, ele sentiu que ela nunca saberia o que aquilo significava. Se dormindo, ela de fato o ouvira, de que adiantava?, ao acordar ela não se lembraria. Era o contrário de um contrário. O avesso do desejo e a esperança do pacto silencioso de manterem segredos um do outro.
Quando, por um acaso, a ligação caiu e ele mudou de posição na cama para dormir, começou a suspeitar que estava mesmo apaixonado. Por ela? Não sei. Pelo momento talvez?, pela cumplicidade adquirida ao partilharem um silêncio? Por alguma coisa. A verdade é que, fosse o que fosse, tudo bem, ele não se importava e adormeceu muito depressa. Parece que amar tem um pouco disso.