Era hora de ir. Levantou-se e começou a se arrumar. Tinha cochilado sem perceber, não queria se atrasar para o jantar, isso geraria discussões e reclamações intermináveis com a esposa. A começar pela acusação de que não se importava com ela, sendo que vivia se matando de trabalhar por elas e as crianças. Assim, fazia tudo para evitar brigas, já quase nem falava nada em casa para não gerar confusão. Tudo que dizia era usado contra ele, descobriu que a melhor solução era fechar a boca.

Pior que sua solidão, por falta de carinho da esposa Jane, era ficar mal com ela, os dias se arrastavam, o ambiente ficava ruim, o trabalho não deslanchava, a concentração sumia. Aprendeu que paz familiar era necessária para sua própria sobrevivência. Quando estavam bem, num ambiente sem brigas, por mais que não houvesse sexo, ou qualquer demonstração de carinho, era o suficiente para a Lei de Malthus funcionar ao contrário: o que tinha para dar errado dava certo!     

Olhou mais uma vez em volta, observou o corpo nu de Anna que dormia sob os lençóis. Era uma bela mulher, mas lembrou-se vagamente do corpo da esposa... Sempre foi louco por ela, ainda a achava muito atraente, até mais bonita que Anna. Lembrou-se da lingerie que ela usava na noite anterior, quando a olhou disfarçadamente para que não percebesse e interpretasse mal seu olhar. Qualquer gesto de sua parte acusava - o de só pensar em sexo!. O tempo o fez estabelecer um tom neutro na relação para evitar possíveis brigas.

Como queria que ela ainda o desejasse, que ainda lhe devotasse um olhar de admiração e desejo, como já olhou um dia. Carregava na mente cenas memoráveis em que fizeram amor quando namorados, já não era a mesma Jane. Tentou mudar o pensamento enquanto se vestia, preferia não pensar nela, não gostava da culpa que isso lhe causava. Quando se casou imaginava que seria para sempre, que teria uma só companheira. Anna foi por acaso.

Ficou pronto. Deixou os pensamentos de lado e se concentrou no corpo da amante ali nu sob os lençóis. Era sua única válvula de escape, sua fonte de prazer, um parêntese na sua vida de monotonia... Mas precisava parar por Jane e pelas crianças, não queria magoá-la, ela era uma excelente mãe, apenas não o amava mais. Já não tinha mais ilusões quanto ao seu casamento, o melhor a fazer era aceitar e renunciar a uma vida de felicidade plena, pois não teria coragem de deixá-la, teria que se contentar apenas com o amor dos filhos.

Fechou a porta atrás de si e saiu sem olhar para trás, prometeu nunca mais voltar como tantas outras vezes o fizera.

                             *******************************

Jane entrou no táxi correndo por causa da chuva. Saíra apressada da casa de Alfredo, único amigo do marido de quem gostava, precisava chegar a tempo de pegar as crianças na escola e terminar o jantar antes que Roberto chegasse. Devido ao cansaço dormiu sem querer e perdeu a hora. Torcia para o trânsito está bom. Acomodou-se no banco de trás do táxi, fechou os olhos e relembrou os últimos acontecimentos.

De olhos fechados sentiu na pele os toques suaves do amante em seu corpo, as palavras ditas com paixão, o prazer sentido em cada toque, seu olhar de admiração e desejo pelo seu corpo. Perto dele sentia-se especial. Voltou a desenhar por causa de seus incentivos, que a considerava uma grande artista. A cada encontro, surgia sempre um novo desenho do amante nu sob os lençóis, em posições pouco ortodoxas. Era a única ocasião em que ainda desenhava.

Sabia não ser mais tão bela. Seu corpo estava marcado pelas duas maternidades e pelo tempo, mas a timidez e vergonha do início da relação se transformou em admiração pelo próprio corpo, passou a se cuidar mais e a se achar bem conservada para sua idade. Nada passava despercebido ao amante, prestava atenção em cada lingerie que usava, cada palavra que dizia e sempre tinha algo novo para surpreendê-la, não imaginava que tinham inventado tantas posições... Estremeceu!

Cortou os pensamentos e voltou a si, a chuva continuava. Olhando pelo vidro embaçado sentiu os olhos marearem, a culpa era sua companheira constante... Sentia raiva por seus pensamentos, culpada-se e às vezes chorava escondida. Queria parar, mas não era forte o bastante. Terminava o relacionamento todas as vezes que saia da casa do amante, mas bastava um telefonema e ela voltava.

Por que chegou àquela situação? Não sabia explicar. Por que se deixou levar pelos galanteios de Alfredo? Sempre soube que ele era safado, não entendia como se envolveu com ele. No início se encantou pelos pequenos elogios, as pequenas ajudas nas festas e nos afazeres domésticos, o olhar de desejo estampado em seus olhos e as promessas de amor sem limites.

Alfredo frequentava sua casa e sempre elogiava qualquer coisa que fizesse de diferente, desde um simples corte de cabelo a uma pintura das unhas. Depois vieram os telefonemas bobos de quem não quer nada... As mensagens de duplo sentido pelo aplicativo, o que a fazia sentir-se sempre especial perto dele; o incentivo para que voltasse a pintar, vendo - a como pintora e não como dona de casa, profissão que passou a exercer depois que os filhos nasceram.

Não voltou a pintar para não desagradar o marido que achava que deveria ficar com as crianças. Gostava de cuidar dos filhos, mas havia um vácuo em  seu interior, um sentimento de fracassso. Sentia-se um peso nas costas dele por arcar com as despesas sozinho. Talvez esse fosse o motivo dele viver mal humorado.

Enquanto seu marido não percebia sua solidão, Alfredo a beijava com paixão, coisa que já tinha esquecido como era, pois Roberto já não a beijava como antes, quando a procurava era para um sexo de alívio, sem beijo e sem paixão. O que houve com aquele homem maravilhoso com quem se casou? Quando deixou de desejá - la e amá-la? Teria sido seu corpo destruído pela maternidade? Nenhuma lingerie o excitava mais, não prestava mais atenção em nada que fazia ou dizia, sua maior atenção era para a televisão ou o computador.

Quando iam ao parque ou clube com as crianças ele levava revistas, algumas que já tinha lido antes, apenas para se distrair e não conversar com ela... Já não sabia mais nada sobre ele, se ainda tinha sonhos ou se estava feliz. Talvez tivesse uma amante... Não, isso não! Não era o tipo de homem propenso a ter amantes, nasceu para ser pai de família, apenas deixaram de cuidar um do outro e se perderam. O pensamento da amante servia para amenizar sua culpa, mas isso não era justo com ele.

Há tempos não ousava perguntar nada sobre sua vida porque viria logo a acusação de que se matava de trabalhar para pagar as contas e uma discussão interminável se sucedia, achava melhor evitar atritos. A única certeza é que eram dois estranhos dividindo a mesma cama.

Lembrou-se ainda de uma tela horrível que lhe presenteou no início do namoro, era uma tela muito feia mesmo! Mas ele mostrava para todos como se fosse um Picasso, como a elogiava e a incentivava, falava para os amigos que era um homem sortudo porque tinha sua própria artista. Sorria e a fazia sorrir... Agora, daquele homem que ainda amava, só restou o mau humor rotineiro, mas ainda o amava tanto... Queria ser amada por ele novamente.

O táxi parou. Sentiu-se aliviada por voltar à realidade, tinha parado de chover. Estava em casa, o jantar sairia a tempo.




* Em 2017 completou 40 anos que foi instituído o divórcio no Brasil. Antes dessa Lei, o casamento era indissolúvel, petrificavam-se estados de infelicidade imutável e perpétuo. Não era possível recomeçar e poucos tinham atitude suficiente para mudar um casamento ruim que já nascia sob o manto da perpetuidade.

Inspirado na obra de Piers Paul Read.