O DIA QUE O CÉREBRO SE REBELOU

Sentado num canto da velha sala de tantas inspirações estava o escritor, em meio a móveis modestos e velhos retratos na parede; um pequeno vaso com delicadas margaridas sobre uma singela toalhinha branca adornava o ambiente. Lá estava ele na elaboração de mais uma obra em sua mesa de trabalho. Folhas e mais folhas espalhadas. Era uma linda tarde de verão, calor abrasivo. O velho ventilador não vencia o calor.

O nosso escritor era experiente, vivido, mas, como tantos, esquecido no anonimato. Já havia escrito muitos poemas, contos, romances e sempre a verve se aprofundava no infinito das composições poéticas, exigindo do intelecto pesadas lucubrações.

Naquela tarde a inspiração em borbotões jorrava, fervilhava na mente, tanto quanto o suor escorria na face do escritor, mas inexplicavelmente não conseguia transpor para a branca folha de papel, não como ele a concebia.

Exasperava-se o dileto escritor, escrevia, balançava a cabeça, amassava folhas e mais folhas e as jogava no cesto de lixo, que nessa altura já transbordava.

Forçava os neurônios, passava a mão nos cabelos, e nada. Até que sentiu uma leve dor de cabeça, foi aí que tudo aconteceu. Um fato inusitado, estranho, sinistro. O cérebro rebelou-se, cansado de ser exigido. Amotinado expulsou a razão e imobilizou a emoção. Numa ínfima fração de tempo, arquitetou e desenvolveu uma bomba cerebral lançando-a no ar. A bomba literária explodiu sobre a cabeça do nobre escritor!

Atônito, o escritor viu e sentiu aquela chuva de letras caindo e esparramando-se desconexamente, cobrindo suas folhas de anotações. As letras zombeteiramente bailavam na mesa. A mão do escritor tentava, segurando a caneta, organizar palavras, tentava uma frase, uma sentença, uma oração, mas nada, tudo em vão. Letras no ar, espirrando feito hidrante estourado.

O escritor inclinou a cabeça assustado com a cena, justamente quando escrevia um poema para sua amada, motivo da sua impaciente perfeição. A mão largou a caneta, elevou-se espalmada e recostou à sua fronte, como a lhe dar conforto. E tome chuva de letras, era o vernáculo em rebelião.

Sem saber o que fazer, procurou fixar a imagem da mulher amada em sua mente. O cérebro relutou, mas como não havia se rebelado contra imagens, nada fez. O escritor percebeu aí uma debilidade na defesa deste que agora era seu algoz. E a imagem foi encorpando-se, tornando-se mais clara e definida, até que se assenhoreou do cérebro. A mão do escritor foi descendo lentamente, segurou a caneta diante das letras pululantes e, de repente, como num passe de mágica tudo se aquietou.

E a caneta, movida pela mão, escreveu:

"Meu amor, te amo".

O cérebro havia se rendido ao amor. A razão retornou, a emoção foi liberta. Alegria geral! Todavia o objetivo cerebral foi atingido, posto que para declarar um amor, não é preciso composição intrincada, emaranhada, basta dizer as três palavras de pura magia: "Eu te amo".

A razão e a emoção voltaram à eterna contenda, mas isso é outra estória, conto outro dia.

Do livro "Contos, En...cantos&Peripécias (Oficina Editores/RJ)

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ANDRADE JORGE
Enviado por ANDRADE JORGE em 03/11/2017
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