Amor fisiológico
Encaixar peças de quebra-cabeças na infância pode transmitir a displicente mensagem de que as coisas no mundo se combinam! As mãos se cumprimentam e se encaixam os braços se entrelaçam e se abraçam, as bocas se conhecem e se beijam, os olhares se encontram. O mundo infantil talvez obedeça a esta ingênua crença até que se depara com quebra-cabeças estranhos, peças soltas e emaranhadas junto ao fundo da caixa de brinquedos. Os pedaços já não se encaixam com facilidade, pois as peças são compostas por jogos diferentes e na busca pelo arranjo a qualquer custo a criança engatinha e busca preencher o espaço com seu próprio corpo, contradizendo o desorganizado quebra-cabeça do qual ela não conseguiu montar. Encaixa-se então: a boca na chupeta, a mamadeira na boca do cachorro, o dedo na tomada, e se recolocam os braços da boneca no mesmo vão em que a criança acabou de tirá-los.
No interior da cidade de Malacca, na Malásia, nasceu e cresceu uma jovem inconformada com o destino de solidão que o passar dos anos lhe impunha. Matisa era o nome dela e tal qual uma criança moderna ganhou brinquedos em demasia, no entanto, o coração e os olhos se encaixaram num só: o incrível quebra-cabeça de quatro peças. A satisfação por encaixar o quadrante era tamanha que o jogo era usado pelos pais para fazê-la comer bem, ter bons modos e bom comportamento, tornou-se natural que a proibição da montagem gerasse também um eficaz castigo. Matisa fazia de tudo visando à recompensa: ver o gafanhoto sorridente, feio e amarelo montado. A complexidade e a quantidade de peças cresciam na medida em que, os anos avançavam e os ossos da garota se espichavam encaixando nos músculos. Ela olhava para o próprio couro cabeludo e dizia contente para a mãe que, cada fio era encaixado perfeitamente nos buraquinhos de sua cabeça, as linhas de sua mão se encaixavam nas costuras finais da pele, a dentição superior, segundo ela, havia nascido para a inferior e a língua e o céu da boca eram puro encaixe. Matisa juntava as minhocas do quintal as suas respectivas fendas e passava horas pondo linhas em buracos de agulha. Montava o mapa Malaio em forma de quebra cabeça encaixando todas as cidades, praias, pessoas, comidas e tudo mais que a ela se dispusesse.
Matisa cresceu encaixando-se no tempo e escrevendo poemas harmoniosos, burilados em rima, até mesmo ao falar, exibia sua obsessão pelo pareamento dos vocábulos. Uma palavra necessariamente chamava outra num encadeamento simétrico. “Escolho meus amores de adolescência por características corporais, descarto atributos sensuais, roupas iguais, procuro saber, antes de tudo, se a altura se equiparou, se a mão bem dada ficou e se um olhar no outro se encontrou” (palavras de Matisa). Ao encontrar a peça-amor-ideal de sua juventude, encaixou primeiro seu pensamento ao do amado e, em seguida tratou de acoplar perfeitamente um bom vinho em sua taça. Os braços se entrelaçaram e ela deitou-se junto a ele alojando o corpo na cama: compactados, predestinados e pré-moldados um ao outro.
... Nesta mesma noite da pretensa harmonia completa, Matisa sentiu seu mundo interno se embaralhar, ela que vivera a vida até então à semelhança de uma linha fabril de montagem, amarrada nas causas e efeitos, estava de repente solta por dentro e seus pensamentos não encontravam sentimentos por onde expressar e os sentimentos não encontravam as vias do pensar. Sentiu extrema estranheza e, de repente, nada mais se encaixava, viu-se ali deitada com um homem por cima de si, tentou em desespero lembrar-se de tudo que outrora se encaixava e pensou em uma rima qualquer a fim de retroagir seu mundo à costumeira harmonia. De nada adiantou e, aterrorizada notou que seu coração não se encaixava ao do ser que ali estava. Percebeu isso sem metáforas, e sim de modo fisiológico, corporal, pois, ao abraçá-lo os corações ficavam desiguais, cada qual batendo a seu lado. Neste desorganizado instante pensou emocionada como fora levada pela ingênua ilusão de que tudo no mundo se encaixava. Se logo o coração, tema de muitos quebra-cabeças de sua infância e músculo que mais significava o amor, ficava ao lado contrário quando dois seres se abraçavam, então, um simples abraço provava que nem tudo no mundo se encaixava, uma vez que, o coração de quem abraça encontra sempre o lado direito do peito de quem é abraçado e vice-versa, o coração de um bate no vazio do peito do outro e para Matisa o vazio em nada poderia se encaixar.
Após segundos em devaneio pulou daquela cena de amor sentindo-se a peça errada no quebra-cabeça alheio. Lembrou com assombro, quanto tempo havia levado para encaixar qualquer coisa em outra e forçar tudo a um desfecho de combinação. Suas crenças infantis estavam desmontadas, faltando peças. Matiza abandonou as certezas assim como jogou fora seus quebra-cabeças da infância. E a partir daquele instante o caos, se lhe apresentou, e ela olhou para o mundo de forma desigual, desfigurada, sem eixo, o certo se misturou em coisas erradas, o bem pouco se diferenciava do mal...
Constatou, horrorizada, o mundo de peças desgarradas interagindo na desordem. Perecia sua vontade e a maior de suas certezas estava indo embora. Matisa acreditou durante muitos anos que a própria vida animava um pedaço de carne complexo chamado corpo, encaixando-se nele. Caminhou na praia em companhia do vento e dos anos, um passo após o outro, rumando sem pensamentos significativos, deparou-se com uma ostra pelo caminho, tomou-a pela mão, estava oca, era assim que ela se sentia, o que encontrou fora na verdade um espelho em forma de ostra e nem sequer cogitou a possibilidade dos pensamentos de outrora, pois certamente acharia que a ostra existia em função do caramujo que nela se encaixava.
Longos caminhos se passaram pelo tempo e pela areia, Matisa agora era contemplativa. Carregava no pescoço um colar colorido composto de diversas pedras todas exuberantes em suas diferenças, os pés novamente estavam caminhando na praia de sua infância, adolescência e vida adulta, nos olhos via um mar sem fim com ondas situadas entre o verde e o azul, na alma compunha-se como mulher forte desprovida da ingenuidade do passado. Foi nessa hora que sentiu um suor frio, inconcebível diante do calor insuportável do verão malaio, o coração palpitava dando menção da alegria que preenchia o momento, a cintura ligeiramente arredondada brilhando ao sol, o amor veio sem aviso, e deu-lhe um chute por dentro da barriga. Matisa sentiu novamente a vida transbordando e desta vez dentro de si. Um amor fisiológico que lhe comprimia os rins, apertava o peito, inchava os pés caminhantes. Entendeu enfim que o amor era definitivamente torto, surgiu sem abraços, sem beijos, sem vinhos ao luar, sem encaixe, veio do primeiro chute na barriga que sentiu, anunciando a gravidez e o renascimento de duas vidas. Percebia como seu próprio corpo cultivava a existência independente de sua vontade, de seus encaixes, um ser evoluía interagindo com suas entranhas, perto de sua alma, perto do seu coração, dentro de uma barriga crescente, reluzente, o ser chutando para se revirar, crescer e vir ao mundo. Ao nascer se desencaixaria dela e Matisa o ensinaria a sorrir para o mundo e o mundo por sua vez, seguiria incessante, desfragmentado... girando para embaralhar outras vidas humanas.
Carlos SJ
Escritor, Psicólogo, Músico
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