REAMANHECER NA PRAIA

Rui era um pobre homem gordo. Pobre porque ganhava pouco. Gordo por ser barrigudo. Pai de 7 filhos. Todos menores. O mais velho tinha 16 anos. O mais novo tinha 2. E todos eram homens. Um fato real e estranho. Uma família onde os 7 filhos nasceram machos. Humanos machos. E a mãe, dona Sônia, sempre sonhou em ter uma menina, uma humana fêmea, para criar e enfeitar. Para arrumar toda de fitas e vestidinhos. Depois da sétima tentativa, quando nasceu Bruninho, o caçula, dona Sônia disse: "chegou! Não tento mais."

Rui acordou naquela manhã com os primeiros raios de sol que entraram pela telinha da barraca, no câmping da praia de rio. Foi até uma torneira na grama e lavou o rosto. Despejou água nos cabelos e deixou escorrer pelos peitos, pela barriga. Lembrou de quando era novo, tinha seus 16 anos, e acampava naquele local de areias brancas e água azul quando o céu estava azul. Sacudiu a cabeça, lançando água, e voltou à sua realidade quando um dos filhos saiu da barraca. O sol estava nascendo, parecia uma bola de fogo, saindo do horizonte, de dentro do rio. O mundo reiniciava para Rui e sua família. Mas era verão. Ele estava, enfim, de férias. Depois de ficar 12 anos "vendendo" suas férias para a empresa onde trabalhava como contador, resolveu parar um pouco. E como homem criado no pampa, não aguentou uma semana na beira do mar. Aquele barulho e aquele vento constantes mandaram Rui de volta para a fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, o sul do sul do Brasil. Lá estava Rui, com seus 7 filhos, sua mulher, sua barraca e seu Opala ano 80. Não morava naquela cidade de praia de rio, mas tinha passado bons momentos naquele lugar quando jovem. A tranquilidade do rio descendo calmamente, a sombra do câmping, as opções de lazer e esporte para os filhos... poderiam dar o descanso merecido para o pobre Rui Cavallari. E ele, naquela manhã, lavou o rosto do pequeno Mateus, de 4 anos, colocou água para esquentar e começou a preparar um chimarrão. Dona Sônia, com o barulho na barraca, começou a se levantar. A vida recomeçava para os Cavallari naquela manhã de janeiro.

Depois do café Rui disse que ia caminhar na areia, na beira da praia, até o quartel que se postava nas margens do rio. Na volta traria carne. Não carne de peixe, pois não era costume no local, comer peixe. A carne era de boi, para dona Sônia fritar uns bifes com cebola.

Rui caminhou até o quartel, pela beira do rio, na areia branquinha como neve, e na volta parou num açougue. O local era bem limpo, todo azulejado, e as carnes ficavam dispostas em balcão refrigerador todo de vidro. Atrás do balcão uma mulher morena, alta, aparentando uns 40 anos, atendia com muita gentileza e meiguice a sua tradicional clientela. O açougue Santa Maria era famoso no local, principalmente no verão, quando os campistas buscavam ali costelas, picanha, linguiça, carvão e outros ingredientes para um churrasco. Dona Marilú, sempre com seu sorriso natural, cuidava e administrava bem seu estabelecimento comercial que era ponto de compra de boa carne no bairro Praiano. A higiene era o ponto alto da casa de carnes que também vendia leite, frutas, legumes, pães, cucas, bolos e outras comidas. O sonho de Marilú era ter um restaurante, ou um supermercado. Sonhava em ter os dois. A mulher sonhava alto e para isto seu marido trabalhava sem parar, comprando e vendendo gado, buscando sempre mais lucro nas ofertas e negócios que lhe apareciam. Já haviam comprado aquele terreno, construído uma casa com 3 quartos, cozinha, sala, banheiro, varanda... e um salão comercial. O marido preparava os cortes de carne de manhã bem cedo, antes de sair para os negócios, antes de visitar sua pequena propriedade rural de 25 hectares onde possuía algum gado, porcos, galinhas, perus, coelhos e plantava melancia, milho, laranja, abóbora, tomates e alfaces e cenouras. Mário J. Leivas foi menino de rua, saiu do nada, e com a força de seu trabalho construiu uma família que prosperava, diziam os vizinhos, como exemplo. Graças a dona Marilú, com sua economia e educação, concluíam as vizinhas.

Rui entrou na Casa de Carnes Santa Maria e teve a impressão de conhecer Marilú. Morena, alta, sorriso permanente, brilho no olhar, gentil e meiga. Aquela imagem era inconfundível. Marilú Leivas era mesmo a Malu de 20 anos atrás. Era aquela menina magra que dançava graciosa nas festas do bairro Praiano há 20 anos, quando ele passou um carnaval nesta praia. Ele pediu um pedaço de carne para bife e ela o atendeu com a naturalidade de sempre, sem perceber quem estava na sua frente. Pesou, enrolou, fez a cobrança e deu o tíquete da caixa registradora. Ao entregar o troco ao cliente, seus olhos passaram pelo rosto dele. Percebeu que aquele olhar não lhe era estranho. Mesmo diferente, gordo, com a face bochechuda, Rui mantinha uns traços do jovem Rui de 20 anos atrás, quando saía de sua cidade, principalmente no verão e no carnaval, para passear na cidade vizinha que possuía a mais famosa praia da região pampiana. Malu entregou o troco e já começou a atender outro cliente que estava na fila. Rui, ainda perplexo com o reencontro depois de 20 anos, agradeceu e saiu em direção ao camping. No caminho não parou de pensar no passado, na noite em que conheceu Malu, no verão distante em que suas vidas se encontraram brevemente.

Passaram-se 3 dias e sempre Rui se dirigia até o açougue Santa Maria pela manhã para comprar carne. Um dia era costela, no outro era frango, enfim, todos dias do resto de suas férias, Rui iria frequentar o estabelecimento comercial de Marilú e J. Leivas.

A mulher reconheceu e lembrou de Rui já na segunda aparição dele. Deu um sorriso maior que o de costume, silenciosamente, quando lembrou daquele verão e daquele homem. Muito discreta, não perguntou nada e não fez nenhuma menção sobre o passado. Como uma profissional, apenas atendeu seu cliente até que no quinto dia ele tomou a iniciativa de falar no assunto para dona Malu.

A conversa foi numa segunda-feira, por volta das 9 horas, dia calmo quando o açougue estava praticamente vazio. Marilú preparava o depósito bancário para sua filha subir até o centro da cidade onde ela guardava num banco tudo que faturava. Era o movimento do fim de semana que estava nas mãos de Malu e ela separava e desamassava as notas.

Rui entrou, deu bom dia, disse que estava em dúvida sobre qual a carne que levaria para o almoço dos filhos e ela respondeu dizendo que ele poderia ficar a vontade e escolher com calma. Rui olhou bem nos olhos de Malu e perguntou se ela o tinha reconhecido. Ela, naturalmente, sem parecer surpresa, balançou a cabeça, afirmativamente. Ele, sorrindo, perguntou como ela estava, depois remendando foi dizendo que ela continuava muito linda, expressiva e elegante. Ela, sorrindo, agradeceu o elogio e disse que estava muito bem de vida, trabalhando bem, com 2 filhos, uma mocinha de 14 anos, e um menino de 8. Que tinha realizado um bom casamento e que o marido era muito trabalhador e carinhoso. Rui pensou que só um louco não seria carinhoso com uma mulher como Malu.

Ela perguntou sobre ele e Rui falou de seus filhos, de sua profissão e da vida monótona que levava há anos, indo do escritório para casa, da casa para o escritório, e dos fins de semana com velhos amigos e familiares, no churrasco, indo ver futebol no pequeno estádio da sua cidade... ou simplesmente de ficar vendo TV e bebendo cerveja, vendo o tempo passar. É a vida dos humildes! exclamou Marilúcia, salientando que a vida dela também era uma rotina de comércio e vida de dona de casa, mãe de família.

Rui, que já tinha decidido sobre qual carne levaria, disse que não dava para se queixar da vida. Salientou que tinha gente em situação bem pior, e que a tragédia na família era bem mais insuportável do que a rotina.. Malu concordou e perguntou séria se ele teve alguma tragédia na família, ao que Rui respondeu sorrindo que graças a Deus não.

À noite Rui ficava jogando dominó e baralho com seus filhos até que eles iam caindo de sono aos pouco. O filho mais velho saía para passear com os amigos e amigas de camping. Depois de colocar os menores nos quartos das barracas Rui assistia a programação da TV ao lado da esposa gorda como ele, porém pensando no sorriso e na beleza de Malu. Aquela mulher se mantinha magra e com a pele de seda como nos velhos tempos, pensava silenciosamente. A esposa ia dormir e Rui ficava olhando a lua, saboreando o silêncio da praia e o suave barulho do rio. Imaginava para si uma vida diferente que poderia ter acontecido. Criava na sua mente um mundo novo onde ele aparecia mais magro, mais elegante, passeando com Malu no centro de Buenos Aires, visitando cassinos e casas de tango, viajando em bons carros e findando a noite num hotel de luxo nos braços magros e morenos de Malu. Dizia para si mesmo que tudo isto era mera fantasia de um medíocre homem provinciano, e que a realidade era bem outra. Passou toda a última semana de suas férias neste embalo de ter rápidas conversas e trocas de olhares com Malu, no açougue, pela manhã, e de passar o resto do dia e um pedaço da noite sonhando com a ex-namorada de 20 anos atrás.

Numa manhã, quando ele sentiu estar mais íntimo, perguntou timidamente se ela chegou a ter saudade após ele ter desaparecido naquele verão de 1977. Ela disse que sim, apenas nos primeiros meses, e que logo depois conheceu a pessoa que acabou se transformando no seu esposo. Disse que depois acabou esquecendo o antigo namorado de carnaval. Depois que casei não tive mais tempo para bobagens!, disse Malu, embalando a carne.

Eu nunca esqueci daquele fim de carnaval na praia, exclamou Rui com o olhar distante. No fim não conseguimos concluir nossa festa como queríamos. Abraçamos-nos tanto, nos beijamos com desejo incontrolável, rolamos na areia branca e gelada, e quando fomos realizar nosso tão esperado ato sexual, a tua tia apareceu gritando, te procurando, te buscando na madrugada. Acho que foi minha maior frustração. No outro dia tive que viajar para o norte do país onde meu pai sargento do Exército foi transferido e onde morei por 3 anos. Sonhei muitas noites contigo até conhecer outras mulheres, inclusive minha esposa. Rui foi interrompido com o barulho de uma camionete que encostou na frente do açougue. Era o esposo de Malu. Deu um bom dia ao único cliente presente no recinto e trocou algumas palavras de serviço com a esposa enquanto Rui escolhia um pedaço de costela. Faria um churrasco naquele domingo para se despedir dos amigos, pois viajaria na segunda bem cedo. As férias estavam chegando ao fim e na terça-feira ele já deveria se apresentar na empresa.

No fim do dia, após a churrasqueada, dona Sônia começou a arrumar algumas malas no carro. O marido e os filhos maiores ajudaram. No outro dia era só desarmar a barraca, colocar tudo no reboque e pegar a estrada. Era a última noite daquelas férias. Rui bebeu mais cervejas que de costume, para acabar com seu estoque de viagem, e quando todos foram dormir ele foi passear na beira do rio, se despedir da praia noturna e do rio silencioso. Caminhou uns duzentos metros na areia gelada e branquinha quando avistou um vulto sentado na beira dágua. Percebeu que era uma mulher e continuou sua caminhada, com uma latinha de cerveja na mão, de pés descalços, com a barriga saltando para fora do calção e com olhar fixo no vulto imóvel. Ao chegar perto da mulher viu que era Malu. Na hora não acreditou. Por ter bebido tanto achou que estivesse delirando. Que era uma alucinação de bêbado ou coisa parecida. Quando ela se virou para ver quem se aproximava, tranquilizou-se ao perceber que era um conhecido. Ele ainda sem acreditar naquele instante, pediu licença e sentou-se ao lado dela. Malu estava com um vestido de algodão branco decotado. Parecia que tinha vindo de uma festa. Os sapatos estavam ao seu lado e as pernas longas e morenas salientavam-se com o brilho da lua. Rui acariciou as pernas da mulher, mas ela agarrou carinhosamente suas mãos e as retirou das pernas. Ele olhou nos olhos de Malu e tentou dizer alguma coisa antes de tentar beijá-la. Malu mais uma vez se esquivou da tentativa do ex-namorado e não aceitou sua proposta de realizarem 20 anos depois o ato sexual que haviam interrompido naquela distante noite de carnaval. Rui disse que este era o momento e que depois disto queria apenas morrer. Terminou a cerveja e Malu falou que este não era o momento deles e que suas vidas já estavam definidas. Ela não queria quebrar a normalidade na sua família e que não tinha mais idade para aventuras e ilusões. Confessou que era feliz na mediocridade e na rotina. Não reunia forças para fugir deste mundo. Deixava a ilusão para os filhos, que estavam crescendo. Não queria ser um mal exemplo para a filha de 14 anos e aceitava o conservadorismo como opção de vida. Há 20 anos eu te amei e te desejei, Rui, disse sorrindo. Depois disso Malu levantou-se e saiu caminhando lentamente pela areia, até sumir aos olhos de Rui. O gordo deixou seu corpo pesado cair na areia e dormiu ali mesmo, anestesiado de cerveja, sem sentir as picadas dos mosquitos.

Na manhã seguinte, quando o sol começava espalhar seus raios, Rui foi acordado pela algazarra dos filhos menores que lhe jogavam areia e água, tentando acordar o pai com cócegas e outras brincadeiras. Rui levantou, correu até o rio, mergulhou e nadou um pouco para curar a ressaca do domingo.

A vida deveria continuar e as fantasias Rui prometera a si mesmo deixar para os momentos fugazes de cafajestada e orgias de auto-afirmação proporcionadas por mulheres profissionais da libidinagem.

Mergulhou mais uma vez e foi ao encontro dos filhos que estavam entrando no rio em sua direção.

Em poucas horas estaria de volta a seu doce e monótono lar. Longe do rio, longe do mar...

Na viagem, o filho mais velho contou que conheceu uma menina neste verão ... morena, magra, pernas longas...um belo sorriso... estava apaixonado...

A vida, naturalmente, dava voltas no pampa nosso de cada dia.

Amanhecia.

(Vladimir Cunha Santos, conto publicado no livro OUTRAS VIDAS, 2010)

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 29/10/2017
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