O CANTO DA CIGARRA.
" O que vejo, se não o canto da cigarra, esquecida em um galho de árvore, a cigarra canta desvairada em minha janela. Feliz é a cigarra que canta até morrer, seja de dor ou de tristeza; ela apenas canta, e como ela vou cantar também. "
- Fique a vontade para começar a falar senhor Fernandes, estaremos gravando tudo em áudio.
- Tudo bem... Eu digo… Assoma-se sobre a minha cabeça, um universo de incontáveis espectros fantasmagóricos imaginários. Oriundos de mundos irreais, na penumbra da noite, buscando afugentar o meu mais precioso pensamento. Mas o que eu sou se não relés aventureiro de águas rasas. Certo é, que de nada adiantará a mim fazer alguma coisa a respeito, sou aos olhos de todos um fantasma também. Minha passagem é no entanto indiferente, não serei percebido por ninguém, não serei querido de ninguém, devo portanto, considero-me um caso perdido. Mas... O que é um poeta sem as suas palavras? O que é a poesia sem a sua musa? Há muito venho tentando descrevê-la, revelando de modo oculto a sua terna face entre os versos de meus poemas errantes, mas não houve ainda quem os percebesse. Talvez ela, seja como o luar em noite de tempestade, embora brilhante e suntuoso, o luar fica temporariamente escondido, até surgir em momento oportuno de sua repentina aparição. Eu, neste meio confuso e enigmático, sou apenas uma sombra esguia, parada de frente a um velho riacho, sentado em baixo de uma frondosa árvore, observando o curso tranquilo das águas. Não que eu realmente esteja diante desse riacho, mas assim o imagino, como o disse anteriormente, tenho senão à minha frente, rude e cruel grades de aço, de uma prisão suja e solitária, esquecida no meio do nada, que me separa do resto da sociedade. A minha história é triste, confusa, amor e ódio, desejos ocultos, paixão desmedida. Todos estes sentimentos perambulam ainda em meu coração, não sei o que eu sou de verdade, o que sei, a única coisa que sei, é que devoto grandioso amor dentro do peito. As grades me impedem da liberdade física, que me impede de caminhar livremente, não podem impedir os meus pensamentos, a minha inspiração. Quero portanto, dizer-lhes alguns pormenores do que ocorreu-me. Imagino que os senhores estejam sedentos em saber o motivo que me trouxe a essa carceragem. E vou lhes contar, prometo, pela primeira vez em anos, eu vou lhes contar. A verdade desses fatos nunca foram ditas por mim em nenhum momento desde que fui julgado e preso, mantive-me em completo silêncio até o dia de hoje, até o momento de me reencontrar com as palavras novamente. Meu objetivo é simples, apenas o alívio da minha consciência, quero aliviar o peso que oprime os meus pensamentos, que esmagam o meu coração. Vou tentar na medida do possível, não me alongar muito em descrições desnecessárias, como disse vou tentar, se vou conseguir eu não sei, minha alma de poeta é inclinada a tal, mas prometo conter-me e ater-me aos fatos relevantes que me ocorreram naqueles dias, e, que me trouxeram a este lugar, obrigando-me a um trágico fim sem volta.
Corria o ano de noventa e nove, se não falha a memória, estávamos no mês de novembro, e desde o primeiro dia daquele mês ao penúltimo, eu estava por demais atarefado em um compromisso grandioso, aproximava-se a data de lançamento do meu último livro de poemas, cujo título era: " Dias de intenso amor " Eu estava aflito, não via a hora de chegar a data do lançamento, que seria no dia vinte e nove daquele mês. Como poeta, sempre cultivei uma profunda admiração pela beleza, não importa a forma como ela se apresenta a mim, sou - e disso não resta dúvidas - devotado à beleza, a ela tenho por religião da minha alma, sendo assim, podes imaginar que meus versos e minha prosa falam exclusivamente do amor e da beleza, em principal a beleza única que somente as mulheres possuem. Entretanto, diferente do que muitos imaginam, eu não sou do tipo mulherengo, nada disso, embora profundo admirador da beleza das mulheres, a que deteve o meu coração antes mesmos dessas grades de aço, é uma única, um anjo ledo, que me aprisionou em seu olhar desde minha mocidade. Adianto-lhes, eu não sou o responsável pelo crime que resultou na morte desta que é, nada menos que a Afrodite personificada, confesso sim, o meu amor demasiadamente desmedido por ela, mas tenho portanto, que sou inocente. Eu apenas estava no local errado, na hora errada, e no afã de tentar salvar a vida da minha amada, terminei por transformar-me no principal acusado do seu crime. Um dia antes do lançamento do meu livro, eu fui a casa da bela Afrodite, era mesmo esse o nome dela, maravilhosa coincidência, na ocasião, uma tarde quente de sexta-feira. A casa da bela moça ficava a dez minutos da minha, em um bairro afastado, quase na saída da nossa cidade. Ao chegar, eu notei que o pequeno portão de madeira da sua casa estava aberto, não somente aberto, mas ligeiramente caído para um dos lados, como se alguém o tivesse forçado; embora estranho, entrei mesmo assim; notei também que a porta da sala da sua casa estava semi-aberta, chamei por Afrodite, uma, duas, três, quatro vezes, mas ninguém atendeu. Resolvi entrar para ver o que havia acontecido, na sala de visitas, não havia nada de anormal, tudo estava em seu devido lugar, passei por um estreito corredor que dava acesso a cozinha da casa, quando me aproximei, ouvi um gemido agudo, quase inaudível, vindo do outro lado da mureta que separava a cozinha de uma sala de jantar, foi quando deparei-me com a terrível cena a minha frente. A minha amada Afrodite estava caída, com uma faca cravada no peito, o seu sangue espalhado para todos os lados, a faca que havia sido cravada sobre o peito, pulsava a medida das fracas batidas do coração da minha amada. Meu erro, o meu terrível e imperdoável erro, que levou-me a carregar uma culpa que não é minha, foi tentar ajudá-la, uma sucessão de erros cometidos por mim, na falha tentativa de salvar sua frágil vida, acabou por deixar-me todo sujo de sangue, e quando os polícias chegaram na residência, minutos depois da minha chegada, viu-me debruçado sobre o corpo dela, a faca em uma das minhas mãos, eu havia acabado de retirá-la do peito da jovem, do resto não preciso dizer nada, é como fala o adágio popular, " a primeira impressão é a que fica", é a primeira impressão dos policiais a meu respeito foi óbvia; eles haviam pego o assassino no ato do crime. Tentei argumentar, mas foi em vão cada palavra que disse, o verdadeiro assassino não havia deixado digitais, já as minhas, estavam em vários lugares. Mas a dedução final dos policiais, foi de que eu era o responsável pela morte da bela jovem. Noiva de um político importante da cidade, candidato a prefeito. Afrodite estava com um dos meus textos no momento da sua morte, " O canto da cigarra " eu havia presenteado Afrodite uma semana antes com esse texto, ela enamorou-se com o que eu havia escrito, e por ironia do destino, a moça morreu com o meu texto em uma das mãos. A dedução da polícia, induzida pela pressão do noivo na ânsia de achar um culpado, pairavam sobre este poeta desgraçado e descuidado. Essa é a minha versão, a verdadeira versão dos fatos ocorridos naquele dia. Eu não sou o que dizem de mim, eu não a matei por ciúmes, não… Eu sou inocente… por muito evitei do ocorrido, como também evitei a publicação do texto que minha amada lia na hora da sua morte, mas, por insistência deste coração apaixonado que ainda dói, eu tenho por obrigação que terminar essa narrativa inacabada, " o canto da cigarra ", que neste momento, é o meu canto, o canto de um amor que transformou-se em dor. Por ironia do destino, vez ou outra, uma cigarra vem pousar na pequena janela da minha cela, e começa a cantar, ela canta sem parar, até morrer, tantas foram que já morreram nesta janela, de tanto ouvi-lás, de vê-las morrer, tomei a coragem de quebrar o silêncio e lhes contar tudo, depois de tanto tempo, os verdadeiros fatos daquele dia… Foram esses senhores.
- Muito bem senhor Fernandes, obrigado, conseguimos provas do verdadeiro assassino, e diante das novas evidências, um novo julgamento foi marcado, será daqui a uma semana. Temos certeza que conseguiremos… Dessa vez… O canto da cigarra não será de morte, mas de liberdade.