JUNTOS & DISTANTES (sinopse do monólogo de mesmo título)*

( sentado, com a perna esquerda engessada...)

- Quando a conheci, ainda jovem, linda,... o seu perfume discreto, sua educação, me vi atraído por ela...por que não confessar? Passei a sonhar com ela, a desejá-la...foi muito sofrido vê-la como uma mulher mais velha e eu um adolescente, quase menino. Tímido de fazer dó.

Ela parecia que lia nos meus pensamentos, estava difícil esconder meus sentimentos, mas ela parecia se comprazer com minhas torturas, me requisitando com mais freqüência, cercando-me de cuidados... se ela soubesse a falta que faz, não me deixaria tanto tempo sem falar comigo... E pensar que foi por minha atitude passiva que me encontro engessado e preso neste apartamento. Que morra de vez aquela samambaia e por ela torci o pé e fraturei o calcanhar, para atender a mais um de seus caprichos, empurrando aquele velho armário do escritório.

Aceitei que me chamasse de filho, era o máximo que poderia esperar...nunca me falou do falecido marido, jamais mencionou o nome dele, morreu em acidente de carro, a deixou grávida das gêmeas... Se ela soubesse (ou será que sabe ?) que jamais a vi como minha mãe, mas como uma mulher desejada...

Raios, porque esta solidão nos deixa tão amargo e lúcido? Quanto tudo é silêncio ficamos a sós com nossos fantasmas, sem disfarces e hipocrisias... eu sempre a amei e a desejei, desde que a vi...não importam as barreiras da idade, mas ela nunca assumiu que me vê como um homem... nos olhamos, sabemos o que sentimos, e nos calamos... Marina, eu te amo ! Te apresentava todas as moças que namorei esperando ouvir uma censura, nunca quis ninguém, aquilo era apenas uma forma de vê-la perturbada, impedindo-me de ter alguém...eu sei que não é fácil assumir esta paixão, minha querida, há as diferenças de idade, de posição na carreira...

Quem diz que não importam o que dizem ? Mentira, vivemos confinados às opiniões alheias, socialmente cercados, vivendo e buscando a aceitação social. Além da idade, que por si só é um abismo, ela teria que vencer a si mesma, sair de sua encubadora pessoal e se dispor a enfrentar barreiras... sinto que prefere que continuemos assim, nos amando nos olhares, nas entrelinhas de meus textos, que tanto ela aprecia... É como um segredo a dois, não revelados a nenhum de nós mesmos, sabemos, intuímos, mas não nos revelamos em palavras, não nos assumimos...

o que diriam todos ? Que importa, eu só quero ficar perto dela, senti-la, satisfazer suas pequenas vontades, ser-lhe necessário... que falta ela me faz ! Fico louco, dias intermináveis, implacáveis, enlouqueço...

Só então pude entender por que todos os meus textos, que ela sabia de cor e os recitava emocionada foram parar no lixo...

Evidências de que também ela queria inutilizar as verdades que sentia e repudiava...

(AVANÇA TRANSTORNADO PARA O FONE, COMEÇA A DISCAR)...

(uma voz feminina em off) – Alô, quem está ai ?

Quer falar com quem... brincadeira de mal gosto, não tem o que fazer ? Ligando a estas horas ! responda ou vou desligar !

(segura o bocal e suspira, chora, está fora de si, e desliga)

- Por que este medo de dizer toda a verdade ? Medo de perdê-la de uma vez...de não ser entendido... de ser incompreendido em nome da moral e dos bons costumes...de não mais vê-la...

Melhor mantê-la por perto na figura materna, do que sentir que a perdi de vez... o desprezo me mataria, eu não suportaria ter relações cortadas...Marina, você acabou me ensinando a viver, não posso conceber a ideia de rompermos esta relação silenciosa entre nós, importa tê-la por perto, senti-la próxima... não posso correr o risco de jogar tudo no lixo...eu te amo, Marina...

Prefiro morrer a cada dia, sufocando minha juventude e meu vigor, tão somente para estar perto dela, vê-la, merecer a sua atenção...

Jamais entenderiam este amor, subentendido no silêncio dos olhares, que se policiam, opõem limites, não se permitem em se revelar.. Coroado pelo medo, asfixiado esse sentimento, esperando que se escoa indefinidamente, como lágrimas conformadas com a sina que se propôs, até que a velhice nos impeça de vez de vivermos o que sentimos e, conformados, morramos...

- como dói amar, sentir-se amado, ou será imaginação, desejo único meu ?... já não sei..., convivermos juntos e não podermos encarar os fatos, nem para nós mesmos, como se fosse proibido um homem mais novo amar uma mulher mais velha...

Há uma barreira intransponível entre nós, jamais ela se permitirá se revelar que gosta de mim, seria ir contra todas as suas certezas e convicções, um peso maior que o silêncio dos olhares...

- Se ela já demonstrou amor por mim ? Como não ? Sentia seu constrangimento a me ver com uma namorada, ficava inquieta, opinava, criticava até saber que havia desistido, qual a razão disso?

Querer-me como um bibelô, um capricho seu, seria mesquinho demais, sórdido demais, inconcebível...

talvez ela não me ligue para não se trair, talvez seja um desafio à sua resistência. Na repartição a convivência é mais fácil, trivialidades de colegas, em meio aos demais... na casa dela, com as filhas ou as netas, também encontra forças para não estar a sós comigo... no telefone faltariam assuntos, além de me perguntar como estou...

(como se respondesse à imaginária ligação) – Alô, querida, estou mal, preciso, urgente, de uma série de coisas, preciso muito de sua presença aqui...

ela jamais vai ligar...não terá coragem para isso, ela também me ama e luta contra essa verdade... Ela nem sabe aonde moro, jamais esteve aqui... Vivemos próximos... juntos e distantes !

( No outro dia, já sem o gesso na perna, roupa social, gravata desajustada, uma garrafa na mão, visivelmente transtornado)

- Vicente, querido, estava esperando a sua volta para participar a todos vocês, meus colegas de tantos anos, este momento tão especial para minha vida...

Vocês que me conhecem sabem que enviuvei ainda jovem, esperando por minhas filhas, passei todos esses anos cuidando de minha família sozinha, fazendo de vocês todos um pouco da grande família do coração...

(Eu, atônito, achando que ela criara coragem para assumir diante todos nossa relação...talvez motivada pela minha ausência de dez dias, parecia ser o meu grande momento...)

- Reencontrei alguém da minha juventude, que morava em outro País, perdemos o contato por tantos anos, até que nos reencontramos, ambos viúvos, e pretendemos recomeçar nossas vidas conjugais...

Fui me achando

vasculhando

pelos cantos

de mim restos

perdidos

recolhidos

recompondo

quebra-cabeças

mosaico estilhaços

peça-a-peça

desenho

tosco

encontrando

aqui e ali

cacos farelos

inteiro e dolorido

em risos

ameaças partir...

- Fui convidado para o meu próprio enterro... morri nesta tarde apunhalado, varado por uma lança, que me perfurou o corpo e a alma...Sonhei como um idiota, alinhavei esperanças que só existiam para mim mesmo, parvo e estúpido como sempre !

- Só eu não vi que nesta relação ilusória só eu amava... mente burra, sonhadora, que cria uma fantasia anestesiante como forma de sobreviver a esta solidão medonha, este cárcere que eu mesmo me impus e nele sucumbi...morto em vida...empurrando os dias com a barriga, como um burocrata faz com seus papéis, engavetando soluções, fugindo de mim mesmo e de minhas cruas verdades...

Jamais fui amado como acalentei sê-lo, nunca fui correspondido, como acreditava... nunca existiram barreiras pois não existia nenhuma relação, nutrida apenas pelas minhas neuroses e fantasias...

Sussurrei não acreditando no que ouvia - Parabéns ! Nunca é tarde para recomeçar... a abracei frio, formal, desencantado...

Patético, parecia que ia desfalecer em frente a todos... minha cabeça rodopiou, mas, como sempre, ninguém percebeu...

O drama era só meu, as mágoas intransferíveis apenas minhas...

eu e a minha solidão dilacerante...

E agora, sonhador, em que porto vais ancorar tuas mágoas ?

Quais desculpas para se manter sobre as próprias pernas ?

Que razões para viver restaram ? Nenhuma !

( abre a janela, barulhos de carros e buzinas)

- Nenhuma razão para continuar meus dias, nenhuma, acabaram de levar meus sonhos, ilusões acalentadas sozinho...amor de via única, nunca correspondido, apenas nas minhas ilusões...

( fazendo menção de subir no parapeito da janela, desengonçado pois já está alterado com o álcool)

- Jamais saberão que um homem virou um pássaro e se estatelou no asfalto por um amor imaginário... bom tema para literatura e uma estupidez na vida prática.

Serei notado por momentos, enquanto durar o velório...mas corpo de esmagado tem velório apressado, enterram logo...então esquecerão mais cedo de mim... nunca entenderão a razão de meu suicídio, este segredo que me envergonha irá comigo para a sepultura...

Haverá uma nota sucinta em jornal popular: homem de meia-idade suicida-se, não se sabe as causas... Terei passado pela vida na insignificância do anonimato, sem saber o que é a tal felicidade...nem momentos felizes, de tão raros, não me recordo deles... Não deixarei mensagens, será um enigma... será que ela desconfiará da razão deste gesto extremo ? Acho que não, nem ela, aturdida na felicidade de seu recomeço matrimonial, jamais imaginará que foi o motivo de minha morte...nem ela !

(pensativo, olhando a rua, distante)

O que me restou, a pena de mim mesmo, alguém de quem ninguém haverá de se lembrar por muito tempo, breve serei passado, esquecido...

( toca o telefone insistente. Ele reluta em atender, parece decidido ao ato de se jogar pela janela) – Miserável, tanto quis que tocasse nestes intermináveis dias de agonias e ficastes mudo...Agora resolve tocar...

( vai desanimado atender) – Alô ?

- Marina ?! dona Marina, que surpresa boa ! (reanima-se)

- Sabe que sim... Não, não se preocupe, não estou ocupado, pode falar... jamais me incomoda, a senhora sabe que não...

- Claro que sim, fico feliz que tenha se lembrado de mim...

pode contar comigo, aliás como sempre, eu também sei o quanto a senhora me considera, fico feliz, muito feliz, por isso...

Seja feliz nesse recomeço de vida...

( vai até a janela e a fecha) – Morte, fica para outra vez, quero viver ! Ela ligou, lembrou-se de mim....

(irônico) - Ela sabe que pode contar comigo sempre que precisar... ela ligou ! - Não estarei só enquanto ela viaja... a gatinha Filó ficará comigo...

- Estúpido, Vicente, como uma criança que se engana com um pirulito...

Estou contente ?! As algemas se apresentam em meus pulsos, depois de terem sido removidas, estendo as mãos para a volta à prisão ou renego a subserviência e tento andar por meus próprios passos sem acalentar ilusões ? Atiro-me pela janela ou enfrento meus medos e enterro estas fantasias que me ajudaram a construir estas paredes em que me aprisionei alienado de mim mesmo ?

Ela não me deixou, não...isso não ! Pois jamais esteve, estivemos juntos e distantes o tempo todo... Devo a este relacionamento inesperado dela a libertação de minhas ilusões, enterrou o insepulto cadáver, figura existente apenas na minha doentia imaginação...

- O que seria de nós sem o consolo íntimo da utopia do sonho impossível? Sem a eterna esperança que nos arrasta a viver ? Alimentando falsas fantasias que nos iludem para nos ajudar a caminhar, a viver cada dia, sucessivos e iguais, como se fossem indefinidos futuros, sem porto de chegada, sonhos adiados para eternos amanhãs como forma de suportarmos a realidade presente, o fardo que nos pesa nos ombros e na alma...

Palavras, meras palavras ao vento, autoconsolo, piedade de mim mesmo !

- Não se brinca impunemente com a vida alheia, minha cara, isso nunca ! como diz Saint Exupery no pequeno príncipe: você é responsável por tudo aquilo que cativas...

Como fico eu neste enredo tosco? um ingênuo, que imaginou ser amado, correspondido...por isso foi usado como um simples serviçal, usado e abusado em todos os finais de semana, sem saber o que era o gozo de umas férias, sempre a servindo... ( cruel, dementado) – Há que se haver comigo, cara-a-cara, dizer que nunca sentiu nada por mim, além da falsa amizade, há de afirmar que nunca gostou de mim como um homem... Chega de diálogos mudos, de subentendidas atitudes, chega !!! Há de se ver comigo, nem que seja a decisão mais séria e definitiva que eu tenha que tomar. Não serão meus medos, minhas ponderações a me fazer sair de cena como um objeto descartável...

Marina, terá que me dizer, frente a frente, que nunca nutriu nada por mim, sim, que apenas eu, na minha imaginação doentia, construí este castelo que vejo desmoronar na minha frente...

Já não há mais tempo para remediar situações, a vida corre, a minha foi controlada pelo olhar dessa mulher, lia nas entrelinhas suas ordens, a me guiar como um robô...agora vai partir, como se nada, absolutamente, me devesse ? Isso não !

( disca fazendo-se sério) – Dona Marina ? Sim, sou eu.

Quero lhe dizer que terei que requisitar uma das licenças-prêmio, um parente doente no interior, um tio meu, é urgente...Ligaram ainda agora, necessito ir amanhã mesmo.

Desculpe por não poder ficar com a Filó ( sarcástico) – Teria o maior prazer em ajudar... Gostaria de vê-la antes de sua viagem, estará sozinha? posso esperá-la na garagem ? Claro que a espero se chegar antes.

( desliga satisfeito e imita a dona Marina) – Mas, Vicente, contava com você, só confio em você...claro, para cuidar daquela velha gata espalha pelos, para isso ela só confia em mim...talvez pensasse em me pedir para deixá-la no aeroporto com seu amado, tenho certeza que pensava em me pedir isso e também carregar as bagagens, quem sabe ? Sim, certamente que sim !

_ Boa viagem, dona Marina, seja muito feliz !

( fazendo um gesto de quem dá uma banana)

(procura dentro do guarda-roupa um objeto, que está embrulhado)

- Nunca imaginei que pudesse precisar disso um dia...

(Resoluto, olha-se no espelho, penteia-se, passa perfume. Abre uma agenda e procura um telefone)

- Aqui está, Tânia, sabia que tinha guardado...

(disca. Uma voz feminina atende)

- Tânia, é o Vicente, da repartição... claro que a surpreendo nunca te liguei antes, está ocupada ? Quero vê-la, que tal sairmos nesta noite quente e convidativa ?

- Passo por aí, assim que chegar te ligo, você desce, ok ?

- A Tânia linda, leve, solta... e jovem, dona Marina !

Eu fingia não ver o interesse dela, preso nesse amor neurótico não correspondido, quanto tempo perdido !

(pega o paletó, alinha-se e se dirige à mesa, pegando um calhamaço de papéis, dentro de um envelope, joga as folhas, aos poucos, pela janela)

Neste envelope pardo, Vicente, sua trincheira e fortaleza, iludindo-se e remoendo sua solidão na espera por sua princesa, como aquele Sapo de meu poema em sua paixão pela Lua...tão distante e impossível... Estivemos o tempo todo, Marina, Juntos e Distantes !

- Chega de tantas lamúrias, da solidão acalentada em palavras sussurradas entre estas paredes, de confissões de minha covardia expressas em chulos versos... Deixo minhas muletas, meus falsos consolos...

- Marina, você me aprisionou neste cativeiro que as minhas carências construíram... só eu estava cego, era mais fácil seguir vivendo na alienação de mim mesmo do que me enfrentar com meus desafios e medos... Em nome desse amor servi-a como a um escravo sem vontade própria, fui ama seca de suas filhas e netas, o garçom em suas recepções domésticas, o churrasqueiro, o porteiro, o faz-tudo em suas necessidades, esquecido de mim mesmo. (ABRE A PORTA, SAI).

(De volta ao apartamento, ligando a televisão):

“ Agora a noite foi encontrada morta, dentro de seu carro a funcionária chefe do departamento público da secretaria municipal, senhora Marina Angélica de Souza Lima, 48 anos, viúva, ao que tudo indica vítima de latrocínio, o assaltante se evadiu levando a bolsa da vítima, ferida de morte por três disparos à queima roupa, nas proximidades do estacionamento do edifício em que a mesma residia, não houve testemunhas...”

(Levanta-se da poltrona segurando a bolsa da vítima, espalhando seus pertences sobre a mesa, olhando as fotos dos documentos)- Como você estava linda nesta foto, minha querida, linda !

- Tudo poderia ter sido diferente, Marina, minha amada, tudo...

(lembrando-se de suas súplicas diante a ameaça da arma) ... Meu querido, minha criança, você se confundiu, nunca o vi como a um homem, te juro, nunca !...Não me permitiria sequer imaginar essa possibilidade, você se enganou, te amo como a um filho...

Um filho ?! É tudo o que você tem para me dizer, depois desses anos todos de subserviência, de acanhamento, de esperanças cultivadas e jamais, nunca, desmentidas ? Você acha mesmo que estou maluco, que só eu acreditei nesse amor subentendido ?

Você, maldita, trancafiou-me em mim mesmo, construiu as celas de minha prisão íntima, segregou-me de viver a minha vida... Agora, partes para viver a sua, comprazida em prazeres, sem ao menos dignar-se a me ver como alguém que amastes em silêncio...

- Choras, diante a verdade ?! Quem sou eu, um boneco sem sentimentos ?, um ser que se usa quando necessário, um empregado sem salários, alguém desprezível ?

Não, jamais, o preço da ternura negada, migalhas recolhidas em olhares furtivos, esperando, eternamente, como se fosse possível reprimir sentimentos pelo tempo todo... Você brincou comigo, ceifou o melhor de mim, de minha juventude, ditou regras de como viver, como me comportar, assumiu meus gostos, decidiu tudo por mim, roubou-me por inteiro, interferiu, inclusive, até acabar com todos os meus relacionamentos afetivos...

Não desconhecias porque meus escritos em versos e prosas eram tristes...Fiquei preso, retido entre estas paredes, como o canário do vizinho, que lamenta a sua sorte cantando triste, e a mim, que nem mesmo confidências pude ter e sequer cantar meu pranto solitário e desesperançado... você foi tudo, e foi o nada, estivemos juntos, próximos...JUNTOS E DISTANTES, sempre !

- Choras o choro do desespero, porque sabes que a minha liberdade tolhida reivindica o teu fim para se libertar totalmente, sabes o preço do descaso, o carinho negado, o consolo que tivestes de mim e jamais o retribuístes?... Nenhuma ligação para saber como eu estava com minhas dores na alma e na minha solidão... mas sempre, solícito, para lhe prestar solidariedade, enxugar tuas lágrimas, entendê-la, protegê-la em seus medos... Não, eu nunca a amei como uma mãe, você sabia disso, mas procurava esconder...sabe que seria capaz de renunciar a tê-la como uma fêmea desejada, apenas satisfeito com a sua presença, quer sentimento maior, mais desinteressado, mais despojado que esse ?

Sublimei minhas carências, meus ímpetos de homem, reneguei o sexo que me inflava as veias e me reivindicava a carne do desejo por apenas respeitar suas convicções... cedi, cedi sempre, cederia sempre, eternamente...

Não me peças para deixá-la ir com outro alguém, distante de mim, entregue aos afagos que não compartilhastes comigo, não me peças isso... Você é uma mulher sensível, sabia mais que eu mesmo, o que eu sentia, o que escrevia, os amores impossíveis narrados em farrapos de poesia...sensibilizada, enxugava suas lágrimas, por que um homem só, ainda jovem, teria tanta solidão expressa em versos melancólicos não fora diante a um amor impossível...tão retratado como um sapo que ama a lua, numa distância intransponível ?

Fale que me amou, mas teve medo, eu respeito... mas não negue.

Não transferiras a mim a demência única, seja partícipe de minhas

ilusões, não me deixe só na minha loucura...Assuma que tens medo de revelar a si mesma seus sentimentos, eu entenderei, mas não negue, não me faças sentir que sou lunático, que apenas eu, nas minhas fantasias, sou errado...

Assuma que me ama, não como a um filho, isso é esmola, mentira, desculpas, diga que me desejou como uma fêmea diante ao macho, ai e eu entendo e a deixo livre...

-Tudo poderia ter sido diferente, minha cara, se você confessasse que me amava mas teve medo de me assumir...eu teria deixado você ir, mas o seu silêncio, a insistente negativa, não deu sequer razões para desistir de me libertar de ti, apertando o gatilho... Tive que matá-la para me libertar, a culpa foi sua...

-Se tivesses confessado teus medos e receios, e não negado o teu amor, ainda que impossível, estarias viva para seguir teu caminho, mas preferistes teus escrúpulos, pisando em minha dor...

(bebendo... pausa)

restos, sobras, o que ofertastes

àquele que usastes e feristes

a quem nada mais interessas

desferistes à esmo, imprudente,

menosprezos azedumes letais

migalhas de afeto e atenção

trouxestes no âmago acalentado brando

quem te carregastes nos ombros

e te erguestes em tua solidão

soterrastes sob pés inclementes

martirizastes com crueldades

inoculastes o fel da ingratidão

saístes inteira em teu orgulho

pouco importastes e te negastes

a dar um adeus, compaixão.

segue teus caminhos,

em desatinos,

semeastes dores...

...colhestes espinhos !

Você ficará na minha vida como um sonho, do qual nunca acordei, breve será um passado , tua ida minha alforria, minha libertação...

Meus temas não serão mais de lágrimas transcritas em poemas, mendigando a atenção de alguém, tentando em enigmas transpor minhas dores... Não mais, agora serão saudações à vida, à liberdade...Não mais escreverei para ti, mas para mim mesmo, para me certificar o quanto estou bem e lúcido, dono de meus passos e de meu destino...

(como se fizesse um brinde, irônico, levantando uma taça)

Agora, minha cara, não estamos mais Juntos e Distantes...apenas distantes !

Devo ter um roupa apropriada para essas ocasiões de condolências... um terno preto, um óculos de sol para ocultar um olhar inconsolável...

(toca o telefone insistente)

- Alô, Tânia...sim, acabei de saber, estou atônito.

Acho que ocorreu no momento em que estávamos lanchando juntos...

Ela era uma mãe para mim...

* Publicado na antologia CONTOS FANTÁSTICOS 2019, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.