Caneta na boca
Ele estava sentado em seu canto de estudos. O computador ligado sobre a mesa, uma pilha de livros ao lado, o pote de canetas carregado e até ali esquecido e um pequeno Yoda observando a cena de camarote, embora aquele rapaz pensasse que estava sozinho em um dos seus íntimos momentos de reflexão.
Passara a tarde ali mesmo, com as costas curvadas sobre a mesa, os olhos presos na tela do computador lendo e relendo os textos de uma longa bibliografia que seria usada numa prova. A prova, aliás, estava a cada dia mais perto. Ele estava mesmo muito preocupado. Com isso também, mas não era tudo.
O relógio marcava 22h quando ele fechou o último texto que tinha coragem de enfrentar naquele dia. Deixou-se escorregar na cadeira desconfortável esticando as pernas e jogando a cabeça para trás. Tirou os óculos que usava para trabalhar ao computador e ficou alguns instantes olhando para o teto. O quarto estava imerso em uma meia-luz desoladora. Uma das duas lâmpadas do pequeno lustre tinha queimado no dia anterior e ainda não fora trocada. Ele piscou algumas vezes enquanto tentava afastar de diante dos olhos as palavras que tinha lido. Ao menos no restante daquela noite queria esquecer as coisas importantes, queria deixar-se levar pelo silêncio tranquilo que antecede o sono.
Mas ele não era um rapaz de sorte e depois que as palavras foram embora, depois que o texto ficou tênue no fundo de sua mente, outras coisas importantes foram acendendo suas luzes como uma cidade noturna que desperta para festejar.
O primeiro pensamento que lhe ocorreu estava ligado à uma ideia que tinha tido ao longo daquela semana. Sabia que era um rapaz tranquilo, um tanto tímido, quieto, e quando falava com as pessoas às vezes temia que elas não conseguissem compreendê-lo por sua própria incapacidade de se fazer compreender. Passara a semana toda culpando sua maneira de falar. Baixa, para dentro, ou algo assim. Mas o YouTube dizia que tinha solução para o problema. E lá estava ele, sentado em frente ao computador, ouvindo um cidadão de voz grave e marcante explicando “como falar melhor”. Era um assunto desinteressante. Meu Deus, como era desinteressante. É difícil saber quando se está prestando atenção em uma coisa ou prestando atenção no que seu coração está gritando. Ou mais difícil prestar atenção quando o tal coração está fazendo isso.
Estava?
Chegou a hora de um exercício. “Coloque uma caneta na boca e fale...”, sugeriu o homem no vídeo. A sugestão passou raspando pela mente do rapaz que em meio a seus pensamentos já tinha começado a piscar de sono ou surtar de desespero. Foi um sinal para despertar. Com a mão meio desorientada buscou uma caneta no pote sobre a mesa e meteu-a na boca, apoiada entre os lábios na horizontal como o sábio sugerira.
Era o ápice da sua desgraça. Isso se olhasse de modo a ficar por cima. Mais justo seria dizer que era o fundo do poço emocional. Com a caneta na boca e os olhos presos ao vídeo, sua mente viajava dali para outros minutos e outras horas, outras estradas e outras lembranças de estar naquele quarto discutindo com sua incapacidade de manter-se calado. O peito ardia. Cara, como ardia. E ele fingia que não sabia do que se tratava. Aquele tipo de momento tolo que todo mundo deve ter, nos quais mente e coração, razão e emoção, estão em desacordo. Se estranham e se odeiam.
Naqueles breves instantes buscou mudar o foco do pensamento. Reviu as leituras. Não, melhor que não fosse isso. Tentou falar alguma palavra com a caneta na boca e então calou-se de novo para fingir que ouvia uma nova explicação do sábio do YouTube. O trabalho não ia muito bem. Lento, mal pago. Não era o que queria fazer da vida e tampouco poderia chamar de um emprego. Mas dava algum dinheiro. E dinheiro é importante, em especial quando datas importantes estão chegando e há alguém que se quer surpreender com um presente. Se não surpreende na beleza ou na simpatia, quem sabe no presente. Idiota. Pensou nas leituras pendentes. Não tinha tempo. Era como se o mundo escolar voltasse como uma sombra, mas uma que era muito mais pesada dos que as sombras costumam ser e em vez de caminhar ao lado estava ali, sobre ele, brincando de “vou te esmagar se não me acompanhar”. O que estava fazendo? O que estava fazendo com tudo? Com o trabalho, com os estudos, com os planos? O que estava fazendo com os amigos? Quais? O quarto estava vazio. O celular no silencioso não recebia mensagem alguma. Ele já tinha conferido. Era mais uma noite simples de uma solidão parceira que lhe dava tempo para pensar e de vez em quando anotar frases de efeito que mexiam com sua cabeça. Mas era ela que mexia com sua cabeça. Era a ela que ele estava negando seus pensamentos e por ela metera uma caneta na boca para tentar ser alguém melhor. Não estava funcionando, aliás. Nunca se sentira tão idiota.
Fechou os olhos e falou: “Uqu...e eu fa...çu d/a mi..nhá..v.ida?”, a língua brigando com a intrusa na boca. As letras se embolando enquanto ele tentava modular os sons que melhorariam sua articulação na hora de falar. E ele repetiu a pergunta, deixando mais claro o tom que o ponto de interrogação pretendia dar. A pergunta, primeiro, fora feita para o sábio ali na tela do computador, mas o cara não respondeu. Estava interessado demais em ajudar um pobre perdido a falar melhor. Depois a pergunta foi repetida para o Yoda que o fitava com seus olhinhos miúdos de boneco e a boca colada de boneco e refletia o quanto era feliz por não precisar responder à questão do rapaz. Por fim, a questão, que saiu um pouquinho melhor articulada, ficou pairando ali no ar, flutuou na direção do teto e quando lá bateu, as letras se separaram no choque e se espalharam para os cantos sombrios do aposento. O rapaz suspirou ao sentir a alma quebrada. Tirou a caneta da boca, limpou a baba e foi dormir.
Mais tarde, no escuro, Yoda ainda suspirava aliviado por ser apenas um boneco.