Com o peito recheado de clichês
“Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também. Tá me entendendo? Eu sei que sim”. Caio Fernando Abreu
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Estava no portão de embarque vendo-a subir no avião. Ia para o Rio. De lá para ultramar: Moçambique. Pretendia estudar a literatura daquele país. Há pouco, havia sussurrado com pesar ao ouvido dela:
-Você volta?
-Assim como é certo que vou.
Ela era pequena e vibrante. Tinha ímpetos de alegria e momentos de acanhamento acachapante. Gostava de mim, afirmava. Nas noites de frio eu a achava mínima, enrolada em surrados cobertores. Porém, assim que nos abraçávamos, despia-se de toda ressalva e como uma fagulha erótica incendiava os alicerces do território de meu corpo.
-Você não sente frio quando transa ao vento?
-Apenas sinto frio quando não transo.
Tinha muita ternura e tesão por ela. Tinha medos também. Eles saltavam de minha boca como os felinos saltam sobre lagartixas: primeiro tencionava brincar e, em seguida, devorá-la com meus preconceitos:
-Você acredita em amor à primeira vista?
-Acredito em amor e isso é tudo.
Gostava de literatura. Qualquer literatura. Mas, tinha preferência por determinada literatura que lhe falasse ao corpo; pois segundo ela, a alma não tem necessidades de nada. A alma é o Todo e mais cada uma de suas partes e, dessa forma, já está completa. Para mim, restava apenas o lugar-comum da ignorância:
-Prefere poesia engajada ou o Neoconcretismo?
-Prado com Guillén acompanhado de Rumi.
Pegava um Piva ou um Bandeira e, recitando versos livres e a lírica retumbante, esquentava o meu colo com seu corpo abrasador. Por fim, após o beijo discursava: que durante muito tempo havia estado muda para a poesia, agora deveria ler em vez de apenas teorizar. E rematava: ler, narrar, recitar é também teoria.
-O que você mais gosta na literatura?
-Ópios, édens, analgésicos.
Em defesa da literatura comparava-a com a jabuticaba. O agridoce fazia sua cabeça. Não tinha saco e nem tempo para lamúrias e nem para o ufanismo. Adorava jabuticabas não porque são autóctones, mas porque são gostosas, afirmava. Eu ouvia e ouvindo não entendia:
-Os livros salvam as pessoas?
-As pessoas salvam as pessoas.
Agora, observo o avião se distanciar. Ao longe o vejo se confundir com as nuvens esparsas no céu de Agosto. Senti uma bruxuleante vontade de chorar. Mas não posso chorar, não vou chorar. Não agora que estou me segurando firmemente ao Banquete de Platão. Lá em casa, talvez...