JULIANA

(conto livremente inspirado na ate de Edward Hopper)

***

Caro Hopper, meu mundo acabou. Essas são minhas últimas palavras.

Dei-me conta disso pela manhã quando a diarista se despediu. Como posso organizar mais um dia da vida para esse desfecho dramático que pretendo? Não posso.

Ela se foi depois que eu me declarei. Disse que não esperava isso da minha parte. Chamou meu sentimento de “isso” e foi embora. Fui engolido pela realidade, é o fim.

Sobre esse balcão, a rua... Meu mundo é nada.

Meu mundo é esta mesa, o balcão, o bar, a madrugada e a rua em torno da lanchonete. E esta noite eterna, tenebrosamente escura. São Paulo desapareceu como ficção barata.

Eu não faço sentido, sou como parto prematuro que não vingou. Não me refiro à cidade, meu mundo é menor. Meu mundo é menor que a cabeça de um desses pintores que se dizem pós-modernos, menor que a cabeça dos atores da companhia, menor que a cabeça dessa gente que insiste ver beleza em tudo que é impossível.

Estou sozinho, ela não volta mais. Eu sou “isso”.

O resto é isso retangular regular que tem ângulos de noventa graus suspensos a um metro e trinta centímetros de altura do chão ladrilhado. Essa mesa. O resto é a geopolítica dos objetos dispostos sobre o balcão. O resto são meus dedos desalojando outras migalhas, as de pão ao lado do pote de geleia.

Tudo está no devido lugar, cada coisa se reconhece. Eu não me acho.

Sou menos que o papel amassado que veio da padaria e foi deixado ali porque cobre uma fatia de mozarela mordida. Sou a borra de café no fundo das xícaras nas mesas vazias dessa lanchonete.Olho com mais atenção o redor e faço meu último inventário.

Inventário anacrônico de duas xícaras de café amargo esvaziadas na mesa do canto. Em casa não usamos açúcar para adoçar nada, dizem que isso previne o diabetes. Que adianta prevenir doenças se morro de amor. Noutra mesa, a caneca cheia de leite continua do lado esquerdo de uma faca de serra. Cortar os pulsos não é saída romântica. O Viaduto do Chá...

Se o mundo foi mesmo criado quando o verbo se fez carne, ou quando antes o autor dissera fiat lux, o fim do meu mundo é a certeza desconfortável que fiz tudo que podia para conquistar o coração da diarista. Mas ela tem no que pensar, tem outros como eu que a esperam noutras casas vazias como a minha.

Preciso de uma conclusão definitiva.

Amar aquela mulher me ensinou que há uma fina camada de ausência inominável em cada coisa que existe. Uma camada tão sublime quanto imperceptível que reveste, permeia e dá continuidade à tudo na vastidão de todas as coisas reunidas. Tal ausência motiva a vida, a candura da açucena que fenece radiante e solitária sem que vejamos na terra os bulbos da próxima Amarílis. Breve ausência permanente, em cada objeto a falta anima silenciosamente o porvir. Anima o seixo no leito do rio desde o tempo em que era rocha no alto, lá no pico extremo da montanha, como se a sombra do mundo só desejasse sedimentar-se estendida na praia distante. Não quero outra coisa, quero meu sonho desfeito nas areias tranquilas...

Amar essa mulher me ensinou que no longo percurso de retornar, a soma das ínfimas partículas encontra seu lugar na sombra do que foi aquela montanha, que o seixo cumula ausências para matar a fome do peixe enquanto a água mata no homem a fome.

De olhar estendido sobre os telhados a solidão reúne todas as coisas cobertas, reúne as camadas da ausência e revela uma só família protegida do vazio que se estende nas ruas. Onde estará ela, a mulher que reduziu o que sinto à “isso”?

Na pele esticada do rosto da criança que chora na calçada, a face da fome é o mesmo desejo de sermos um só, de não sermos ausência intransponível, de vibrar vontade e potência e ver desabrochar na densa camada de silêncio alguma poesia.

Creia-me, amigo, para além de toda poesia a ausência definitiva dela é motivo para o meu fim. Saindo desse bar farei o que me proponho, darei cabo aos meus quarenta anos de egoísmo e solidão e com eles o meu primeiro e último amor.

Não duvide que seri capaz, Hopper. Que minha alma transcenda as fachadas e o leito das ruas, que transcenda o rio de sangue que escorre pelas sarjetas. Que eu seja o alto pico e o mínimo seixo, o faminto e o provedor.

Sobre os telhados, serei enfim.

Não menos que silêncio, não mais que o som do nome dela.

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Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 09/09/2017
Reeditado em 09/09/2017
Código do texto: T6109278
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