IGUAIS NAS DIFERENÇAS

Como acontecia todos os dias, o cascudo veio. Só que dessa vez, pelas costas, na nuca à traição, tão forte que o rapaz franzino foi lançado à frente, onde tropeçou e bateu a cabeça numa das quinas do bebedouro da escola de alfabetização de adultos na zona rural do município de Mulungu. O rapaz franzino, tímido, de aparência frágil e delicada era Laércio, cujo sangue começava a correr agora pela têmpora esquerda. Não era aceito pelos colegas grosseiros, cheios de testosterona que o agrediam diuturnamente fazendo dele brinquedinho da hora dos intervalos escolares.

A dor foi tão intensa que Laércio pensou que iria desmaiar e chegou a desejar isso. O desmaio não veio, mas, fingiu-o na esperança de que não iriam bater novamente em alguém desfalecido. Por isso, onde estava, ficou caído de bruços no piso molhado pela água derramada, com um dos braços sobre o bebedouro que caíra junto consigo. Laércio tinha já 35 anos nesse dia. Morava na roça, sozinho, sem pais, já mortos em acidente com o caminhão pau-de-arara, indo trabalhar numa propriedade vizinha num desses mutirões que aconteciam todos os anos, onde se reuniam para ajudar o vizinho a realizar tarefas da sua terra, sabendo que o próximo passo seria que esse mesmo vizinho estaria no próximo mutirão vindo ajudar na realização das tarefas de sua própria terra.

Ninguém naquela terra pobre tinha condições de contratar trabalhadores, e, apesar das disposições e coragem para enfrentarem o serviço, nunca dariam conta de fazer tudo. O mutirão era solução boa demais pra resolver o problema de todos. Por essas e outras, como já dito, Laércio vivia só, saboreando sozinho as suas amarguras.

– Levanta, maricas! Ouviu enquanto seu agressor testava a sua inconsciência dando-lhe pequenos chutes em sua costela.

Achou melhor continuar “desmaiado” na esperança de que o deixassem em paz em sua agonia.

Ouviu um baque surdo e abafado e um grito de dor enquanto que seguidamente um braço forte cujas mãos calejadas agarravam-no na parte de trás do seu pescoço fino e o ergueram do chão sem fazer qualquer esforço aparente. Pela rudeza do gesto receou que morreria caso o sujeito desconhecido resolvesse também lhe bater. Teve a certeza de que não escaparia vivo do próximo golpe.

Ousadamente, desafiando seu medo interior, abriu o canto dos olhos para saber quem seria o responsável pelo seu desencarne. Chegando no céu, assim poderia apontar a Deus o responsável por tal ato e exigir d’Ele a justiça. No entanto, para a sua surpresa, que não sabia ser boa ou ruim, quem lhe segurava com apenas uma das mãos, com a mesma facilidade com que se segura um frango depenado pelo pescoço, era uma mulher extremamente robusta e segura de si, que o erguia e sacolejava na direção dos seus algozes e bradava em alto e bom som, como trovão reverberando em ecos graves nos azulejos do ambiente da cantina:

– Quem tocar nele de novo vai se ver comigo! Quem o agredir verbalmente vai se ver comigo! Vai apanhar de mulher e quero ver quem vai ser o “machão” da escola depois disso!

Os que assistiam a tudo em volta podiam jurar ter visto um leve sorriso se fazer no canto dos lábios do “inconsciente” Laércio.

Alguém ofereceu uma cadeira para nela pousar o seu corpo, enquanto sua salvadora levantava o bebedouro caído e dele tirava água gelada para lhe molhar o rosto e lavar os ferimentos, enquanto ele recebia tapinhas nas bochechas para recobrar os sentidos.

– Muito obrigado! Você foi a única pessoa que me defendeu em toda a minha vida!

– Não tem de quê! Você foi o único homem da escola que nunca me maltratou!

– E por que eu te maltrataria?

– As mulheres não me aceitam por eu ser “macha” demais pra elas. Os homens não me aceitam por me acharem feia demais pra ser mulher, forte demais pra ser feminina.

– Por meu lado, os homens me julgam bonito demais pra ficar perto deles, frágil demais pra ser homem, delicado demais pra ser “macho”...

– Qual o seu nome?

– Laércio! E o seu?

– Jovina!

O respeito nasceu ali. Laércio e Jovina passaram a andar sempre juntos, trocando experiências. Viraram confidentes. Ambos viviam sós em seus mundos. Foram se descobrindo aos poucos. Ele, apesar de conhecer o ofício, não tinha forças para trabalhar muito na enxada ou no facão ou na foice, ou na lida com o gado. Cansava logo. Mas, morando sozinho, o pouco de forças que tinha era suficiente para se manter com a sua mandioquinha, o seu milhinho, as suas poucas galinhas, numa agricultura de subsistência. Mas a sua renda mesmo era tirada dos bordados e tricôs que aprendera a fazer com a avó já falecida. Eram-lhe serviços leves e agradáveis para serem feitos entre quatro paredes, ouvindo o rádio e na solidão do seu quarto. Depois vendia o resultado dos seus trabalhos na cidade, sem revelar “a fonte” de quem os fornecia a ele para revender, por mais que insistissem:

–“Segredo de Estado!” Se eu revelar vocês não compram mais de mim... E assim ele conseguia ir mantendo o seu “Segredo de Estado”.

Jovina e Laércio se deram tão bem em sua amizade que um começou a frequentar a propriedade do outro em visitas cada vez mais frequentes. As desculpas sempre apareciam, das mais diversas.

– Trouxe-lhe um bolo de fubá!

– Estava passando aqui perto e vim te visitar!

– Você tem galinha pra vender?

E assim foram... foram... até que um dia, em uma das visitas da Jovina ao Laércio, o tempo fechou, escureceu e ficou tarde e perigoso demais para que ela voltasse pra sua casa em sua charrete.

– Dorme aqui!

– Ôxe! E minha casa?

– Sei não! E tem lugar?

– A gente ajeita! Não tem luxo, mas a gente ajeita!

E assim, naquele dia, se ajeitaram. Ambos no quarto de Laércio. Uma goteira no quarto da “visita” a expulsou de lá. Também, quem poderia imaginar que naquela terra seca poderia cair chuva tão intensa. Laércio, um pouco envergonhado com a situação, viu-se obrigado a colocar o colchão da amiga ao lado de sua cama, no seu próprio quarto.

– Não se preocupe! Eu não poderia te atacar nem se quisesse... sou franzino demais pra isso!

Riram. Ajeitaram-se. Ela já estava quase pegando no sono quando ouviu dele um pequeno comentário que lhe deixou desperta:

– Você é bonita!

Levantou-se sobressaltada:

– O que você disse?

Com medo de apanhar pelo pensamento alto demais, mas já sendo tarde pra voltar atrás, repetiu se justificando:

– Disse que você é bonita! Mas falei com respeito! Me desculpa se por acaso te ofendi.

– Ninguém nunca me chamou de “bonita”. Você está me gozando? Nesse mundo, o que menos sou é bonita!

– Engana-se! Você é corajosa. Você é carinhosa! Defensora dos fracos e oprimidos. Tem garra, autoconfiança. É amiga, humilde. Se faz presente em minha vida. Só vejo beleza em ti.

– Você que é bonito! Aliás, o homem mais bonito da escola.

– Sou um completo fracasso! Não posso nem me defender. Sou inteligente, mas o que posso fazer com a minha inteligência? Apanho todos os dias, sou discriminado, fraco como um graveto, me chama de todos os nomes vexatórios, não me aceitam como sou, sou rejeitado no círculo de amizades tanto por homens quanto por mulheres. Se quer saber, - confessando o inconfessável – nunca me envolvi com nenhuma mulher em minha vida!

Aquilo deixou-a boquiaberta!

– Mesmo?

– Mesmo! Meu único envolvimento é com os meus bordados... sim, sou eu quem os faço! Os tricôs também. Lavo, passo, cozinho, pinto e bordo, coisas de mulher, mas não sou o que falam de mim.

– Também não!

– Também não o quê?

– Também não sou o que dizem de mim. Trabalho na lavoura, tenho as mãos calejadas, enfrento qualquer serviço pesado de igual pra igual com qualquer homem, mas sou avessa a serviços delicados. Sou mais macho que muito homem pra enfrentar a vida, mas sou mulher e sou discriminada por ser assim tão bruta e rústica. Por isso, também confesso que nunca me envolvi.

Ficaram reciprocamente pasmos. Aquelas eram declarações muito íntimas de ambas as partes. Ficaram sentados, se olhando, se analisando, vendo que ambos tinham histórias diferentes, mas, no âmago da situação, eram exatamente iguais na dor e no sofrimento. Um viu que entendia perfeitamente o outro. Choraram! Primeiro, tentando esconder as lágrimas na penumbra do quarto. Depois, sentiram-se mais confiantes e deixaram as lágrimas rolarem de forma que o outro visse. Por fim, estavam abraçados aos soluços chorando juntos os dores de toda uma vida solitária e incompreendida por todos. O amor nasceu ali. Nasceu como num parto! Primeiro vieram as dores, depois, as lágrimas pelas dores, as contrações geradas pelos soluços, e, por fim, o amor nasceu. E lá fora, os trovões rompiam os céus como a festejar a descoberta naquele encontro de amores tão iguais nas suas próprias diferenças.

Jovina vive hoje na casa de Laércio, para onde se mudou. Casados, todos os dias ela chega do trabalho, com a enxada nas costas, vindo da lavoura e dos serviços pesados, suada, rija em toda a sua musculatura adquirida ao longo de anos na lida rural:

– Meu bem, o almoço está pronto?

– Está sim, já vou servir, mas antes, vá se lavar e, por favor, tire as botas antes de entrar em casa... acabei de limpar o chão!

E, naquele dia, a casa, como sempre, estava lindamente arrumada e, na roça, estava tudo como deveria estar:

Perfeito!

Assim como as suas vidas:

Perfeitas!

Charles Lucevan Rodrigues
Enviado por Charles Lucevan Rodrigues em 07/09/2017
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