Tudo tremeu, saiu do prumo, depois aprumou a conversa:
— Viste A Lagoa Azul?
— Sim, é uma linda história de amor que se passa numa ilha. Às vezes viajo na imaginação, e me sinto numa ilha deserta...
— Que adianta ensinar a voar, se tu não voas? Ensinar a sonhar, se não sonha.
— Pecador... Tu és o relógio atrasado do santo ofício.
Sentiu-se constrangida. Teve vontade de dizer que viu estrelas, sentiu calafrios...
—Nosso idílio morreu.
— Então, afasta-te também de Chanana.
— Chanana tem idade de ser minha mãe!
— É por isso mesmo! Ela se parece muito com dona Leide.
— Ela parece com minha mãe ou eu me pareço com teu pai?
— Não respondo por Freud.
— Tens vocação ao sacerdócio, mas esbarras na carne. É preciso que corpo e espírito formem um todo, único e indivisível com os olhos voltados para o céu.
— Tenho um pé no céu e outro no mundo. Alguma coisa superior à minha liberdade de escolha, domina meu ser. Não consigo controlar.
— Podemos ser apenas amigos.
— Impossível! Preciso repetir que não posso vê-la sem desejar? Não consigo desejar sem tocar?...
Fez uma pausa. Enxugou uma lágrima, e disse com lábios trêmulos:
— Quando estás comigo, e eu contigo, Deus também aí está.
— Deus não está no abismo, mas é capaz de mergulhar nas profundezas do abismo para resgatar uma alma. Não vês que o anjo da guarda vira as costas, quando me acaricias o rosto?... quando sorve os cristais derretidos que banham minha face?
— As próprias trevas não são escuras para Deus. Se eu subir até os céus, ali o Senhor estará; se descer à região dos mortos, lá O encontrarei também.
— Pecador, pecador! Não vives o que pregas. És carne, simplesmente carnal.
— Isto é a realidade da ficção. Não compreendes?
— E como vou saber, quando atua Ravenala ou Chanana?
— Nunca se sabe. É impossível separar o espírito da carne. Se a carne morre, vivifica o espírito. E o espírito que é imortal passa a habitar outra esfera. Quando isso acontece, só haverá reencontro no juízo final.
— Não te verei mais?
— É preciso evitar situações que favorecem o pecado. “A ocasião não faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável.”
— Não insistas comigo para te deixar. Posso ir para as mais longínquas paragens, mas meu coração estará sempre próximo ao teu.
— Estou em conflito com o nono mandamento. Sinto que Androceu procura o momento certo para disparar sua flexa no calcanhar de Aquiles.
— Falas como se estivesses com Chanana. Ela é casada. Fica com ela, então! Mas, deixo-te um conselho: “Troque os bens do tempo pelos da eternidade. Ajunte tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não os consomem.
— Desculpe-me por despertar o psicanalista que dorme: “O homem que está livre da religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais normal e completa.”
— Viver no pecado não é ter uma vida normal. Também disse a alma que há pouco evocaste: “Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.”
— Não sou Nietzsche nem tu és Freud, mas haveremos de concordar com quem tenha dito: “ A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.”
— Sinto-me mais forte quando sou amada.
— Não decides se quer e não pode, ou se pode e não quer. Deixas-me confuso.
— Quero tua amizade.
–— Não posso ter as duas coisas?
— Não! Ou amarás a Deus e odiarás o mundo, ou terás o mundo e perderás a salvação.
— Mas ainda estou no mundo!
— Nesta quadra da vida, sair de cena é doloroso.
— Et finita trinus.
— O quê?
— Agora é a vez do leitor criar seu enredo, conforme lhe convém.
— Nem tanto! Quero ser lida por clérigos e leigos, crianças, velhos...Meu desejo é que todos: personagens e leitores, estejam presentes na vaquejada do céu.
— Continuar a história no céu?
— Quero ser a velhinha da carimbamba, passar de geração para geração.
— É difícil viver ao mesmo tempo duas personagens. Ravenala deve sair de cena. Lembras que manchaste a parede de minha casa com tinta guache?
— Sim! Quando transformava tua garagem em local de festa.
— Pois é. A tinta saiu com esponja e água. Como na vida, tudo que não tem consistência passa.
— Gravei teu pensamento, no mais profundo de minha alma: “ Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.”
— Curas a ferida alheia com a mão esquerda, e com a direita, guarda tuas dores na gaveta.
— Amarás uma pessoa, quando conheceres seu coração. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto.
— Tens boa memória!
— Dize-me que não fui apenas personagem, por favor!
Robert, silenciou, mas não conteve o impulso e sorveu, lascivamente, o doce mel dos lábios de ‘Iracema.’
O tempo parou.
***
Adalberto Lima, framento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: cinemaclassico.com
— Viste A Lagoa Azul?
— Sim, é uma linda história de amor que se passa numa ilha. Às vezes viajo na imaginação, e me sinto numa ilha deserta...
— Que adianta ensinar a voar, se tu não voas? Ensinar a sonhar, se não sonha.
— Pecador... Tu és o relógio atrasado do santo ofício.
Sentiu-se constrangida. Teve vontade de dizer que viu estrelas, sentiu calafrios...
—Nosso idílio morreu.
— Então, afasta-te também de Chanana.
— Chanana tem idade de ser minha mãe!
— É por isso mesmo! Ela se parece muito com dona Leide.
— Ela parece com minha mãe ou eu me pareço com teu pai?
— Não respondo por Freud.
— Tens vocação ao sacerdócio, mas esbarras na carne. É preciso que corpo e espírito formem um todo, único e indivisível com os olhos voltados para o céu.
— Tenho um pé no céu e outro no mundo. Alguma coisa superior à minha liberdade de escolha, domina meu ser. Não consigo controlar.
— Podemos ser apenas amigos.
— Impossível! Preciso repetir que não posso vê-la sem desejar? Não consigo desejar sem tocar?...
Fez uma pausa. Enxugou uma lágrima, e disse com lábios trêmulos:
— Quando estás comigo, e eu contigo, Deus também aí está.
— Deus não está no abismo, mas é capaz de mergulhar nas profundezas do abismo para resgatar uma alma. Não vês que o anjo da guarda vira as costas, quando me acaricias o rosto?... quando sorve os cristais derretidos que banham minha face?
— As próprias trevas não são escuras para Deus. Se eu subir até os céus, ali o Senhor estará; se descer à região dos mortos, lá O encontrarei também.
— Pecador, pecador! Não vives o que pregas. És carne, simplesmente carnal.
— Isto é a realidade da ficção. Não compreendes?
— E como vou saber, quando atua Ravenala ou Chanana?
— Nunca se sabe. É impossível separar o espírito da carne. Se a carne morre, vivifica o espírito. E o espírito que é imortal passa a habitar outra esfera. Quando isso acontece, só haverá reencontro no juízo final.
— Não te verei mais?
— É preciso evitar situações que favorecem o pecado. “A ocasião não faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável.”
— Não insistas comigo para te deixar. Posso ir para as mais longínquas paragens, mas meu coração estará sempre próximo ao teu.
— Estou em conflito com o nono mandamento. Sinto que Androceu procura o momento certo para disparar sua flexa no calcanhar de Aquiles.
— Falas como se estivesses com Chanana. Ela é casada. Fica com ela, então! Mas, deixo-te um conselho: “Troque os bens do tempo pelos da eternidade. Ajunte tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não os consomem.
— Desculpe-me por despertar o psicanalista que dorme: “O homem que está livre da religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais normal e completa.”
— Viver no pecado não é ter uma vida normal. Também disse a alma que há pouco evocaste: “Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.”
— Não sou Nietzsche nem tu és Freud, mas haveremos de concordar com quem tenha dito: “ A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.”
— Sinto-me mais forte quando sou amada.
— Não decides se quer e não pode, ou se pode e não quer. Deixas-me confuso.
— Quero tua amizade.
–— Não posso ter as duas coisas?
— Não! Ou amarás a Deus e odiarás o mundo, ou terás o mundo e perderás a salvação.
— Mas ainda estou no mundo!
— Nesta quadra da vida, sair de cena é doloroso.
— Et finita trinus.
— O quê?
— Agora é a vez do leitor criar seu enredo, conforme lhe convém.
— Nem tanto! Quero ser lida por clérigos e leigos, crianças, velhos...Meu desejo é que todos: personagens e leitores, estejam presentes na vaquejada do céu.
— Continuar a história no céu?
— Quero ser a velhinha da carimbamba, passar de geração para geração.
— É difícil viver ao mesmo tempo duas personagens. Ravenala deve sair de cena. Lembras que manchaste a parede de minha casa com tinta guache?
— Sim! Quando transformava tua garagem em local de festa.
— Pois é. A tinta saiu com esponja e água. Como na vida, tudo que não tem consistência passa.
— Gravei teu pensamento, no mais profundo de minha alma: “ Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.”
— Curas a ferida alheia com a mão esquerda, e com a direita, guarda tuas dores na gaveta.
— Amarás uma pessoa, quando conheceres seu coração. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto.
— Tens boa memória!
— Dize-me que não fui apenas personagem, por favor!
Robert, silenciou, mas não conteve o impulso e sorveu, lascivamente, o doce mel dos lábios de ‘Iracema.’
O tempo parou.
***
Adalberto Lima, framento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: cinemaclassico.com