Abortou as lembranças da Quinta da Boa Vista e aterrissou no sítio. Olhou uma gigantesca mangueira carregada de frutos e disse com doçura:
—Lindo!
— Obrigado. Eu também te acho linda.
— Não estou falando de ti, Bobinho! Falo delas...
— Além de bonitas aquelas mangas devem ser doces, vamos levar algumas  quando formos.
— São lindas, mas estou falando do casar de maracanãs trocando carinhos no galho.
— Parece que se beijam, enquanto catam piolhos, ou catam piolhos, enquanto se beijam.
— Não estão catando piolho, bobinho!...
 Furtivamente, Robert   a beijou, meio  fora de prumo. A moça tremeu palpitante como tímida perdiz alencarina.
— A natureza é mãe e mestra, disse ele, tremendo a voz, os lábios e as pernas.
Tudo tremeu, saiu do prumo, depois aprumou a conversa:
— Viste A Lagoa Azul?
— Sim, é uma linda história de amor que se passa numa ilha. Às vezes viajo na imaginação, e me sinto numa ilha deserta...
— Que adianta ensinar a voar, se tu não voas? Ensinar a sonhar, se não sonha. 
— Para!...Ensinas a viver uma vida que não levas. Pecador... Tu és o relógio atrasado do santo ofício.
 Ravenala  teve vontade de dizer que viu estrelas, sentiu calafrios, mas conteve-se.
Robert acomodou-se no sofá.
— Não olhe, disse ele.
— Não olhe desperta o interesse de olhar. O mesmo que dizer a uma criança para nunca entrar no quarto secreto.
Olhou com repreensão.
— Não quero que se aproxime de Chanana.
Robert riu desapontado.
— Isso é conceito, preceito, ou preconceito?
— Não gosto desse seu humor sarcástico.
— Eros não dorme e a presença dele me incomoda.
—Tome um banho frio, isso vai arrefecer teus estímulos hormonais.
— Não é necessário. Três ave-marias me bastam. Se não posso te dar os filhos que desejo ter contigo, não jogarei aos porcos as pérolas preciosas que por prodígio de bondade e misericórdia, Deus me concedeu.
— Tens vocação ao sacerdócio, mas esbarras na carne. É preciso que corpo e espírito formem um todo, único e indivisível com os olhos voltados para o céu.
— Tenho um pé no céu e outro no mundo. Desejo ter tua carne em minha carne, pele na minha pele. Neste caso, não tenho livre-arbítrio. Alguma coisa superior à minha liberdade de escolha, domina meu ser. Não consigo controlar.
— Podemos ser apenas amigos.
— Impossível! Preciso repetir que não posso vê-la sem desejar? Não consigo desejar sem tocar?...
Fez uma pausa. Enxugou uma lágrima, e disse com lábios trêmulos:
— Quando estás comigo, e eu contigo, Deus também aí está.
— Deus não está no abismo, mas é capaz de mergulhar nas profundezas do abismo para resgatar uma alma. Não vês que o anjo da guarda vira as costas, quando me acaricias o rosto?... quando sorve os cristais derretidos que banham minha face?
— As próprias trevas não são escuras para Deus. Se eu subir até os céus, ali o Senhor estará; se descer à região dos mortos, lá O encontrarei também.
— Pecador, pecador! Não vives o que pregas. Por favor, não me chame mais para trabalhar. Não me convide para tuas festas. És carne, simplesmente carnal.
— Isto é a realidade da ficção. Não compreendes?
— E como vou saber, quando atua Ravenala ou Chanana?
— Nunca se sabe. É impossível separar o espírito da carne. Se a carne morre, vivifica o espírito. E o espírito que é imortal passa a habitar esfera superior. Quando isso acontece, só haverá reencontro no juízo final.
— Não te verei mais?
— É preciso evitar situações que favorecem o pecado. “A ocasião não  faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável.”
Claro que Ravenala não  se esqueceu de que foi ela quem convidou Robert para escrever um livro a duas mãos.
— Sinto que estou em  conflito com o nono mandamento, e que  Androceu procura o momento certo para disparar sua flexa no calcanhar de Aquiles.
— Falas como se estivesses com Chanana. Ela é casada. Fica com ela, então! Mas, deixo-te um conselho: “Troque os bens do tempo pelos da eternidade. Ajunte tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não os consomem.
— Não posso ter as duas coisas?
— Não! Ou amarás a Deus e odiarás o mundo, ou terás o mundo e perderás a salvação.
— Mas ainda estou no mundo! O próprio Jesus orou pelos pecadores pedindo que o Pai não tirasse do mundo, mas os preservasse do mal.
— Também oro por ti. Não posso deixar perder-se um homem tão bom. Faça alguma coisa por ti mesmo. Salve tua alma! Quero te ver no céu.
— É para lá que iremos, mas é necessário mortificar a carne. Portanto, não poderemos mais nos encontrar.
— Nem no aniversário da Augusta?
— Talvez o possamos, depois da Quaresma de São Miguel Arcanjo.
— Só?
— No aniversário da Augusta, pode. Com prudência, cautela e respeito.
— Amigos para sempre?
— Amigos de Plantão, amigos da verdade.
— Quero trabalhar. Nesta quadra da vida, sair de cena é doloroso.
Et finita trinus.
— O quê?
— Agora é a vez do leitor criar seu enredo, conforme lhe convém.
— Nem tanto! Quero ser lida  por clérigos e leigos, crianças, velhos...Meu desejo é que todos: personagens e leitores, estejam presentes na vaquejada do céu.
— Continuar a história no céu?
— Quero ser a velhinha da carimbamba, passar de geração para geração.
— É difícil viver ao mesmo tempo duas personagens. A vida é uma ficção da realidade desconhecida. Ravenala deve sair de cena. Lembras que manchaste a parede de minha casa com tinta guache?
— Sim! Quando transformava tua garagem em local de festa.
—  Pois é. A tinta saiu com esponja e água. Como na vida, tudo que não tem consistência passa.
—Mesmo longe, estarei sempre perto do teu coração. Gravei teu pensamento, no mais profundo de minha alma: “ Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.”
— Que adianta ensinar a voar, se tu não voas? Ensinar a sonhar, se não sonha.  Curas a ferida alheia com a mão esquerda, e com a direita, guarda tuas dores na gaveta.
— Ouço a voz de um anjo me dizer: “Começarás  a amar uma pessoa, no momento em que te aproximares do coração. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, mesmo estando longe, estará perto. Isso é quase perto.”
— Tens boa memória, professora!
— Dize-me que não fui apenas personagem, por favor!
— A alma se apaixona pelo corpo e faz ali sua morada, do mesmo modo, o narrador onisciente, pode apaixonar-se por uma personagem que ele mesmo criou.
— Personagem é uma pedra, lisa ou plana, é uma pedra em movimento.
Robert, silenciou, mas não conteve o impulso e  sorveu, lascivamente,  o doce mel dos lábios de ‘Iracema.’ 
O tempo parou.
 O coração dela disparou e uma palavra aparentemente fora de contexto quebrou o silêncio.
— Vi teu nome escrito em uma página amarelada no baú de meu pai. As linhas introdutórias, apontavam para um pedido de desculpas.
— Não leste?
— Meu pai chegou trazendo a aquarela de Toquinho e uma folha de papel em branco, dizendo ser o túnel do tempo... Eu estava mais interessada em saber o que estava escrito naquele  papel que acabara de encontrar no baú. Fiquei curiosa.
 —Eu também
— Não tinha visto aquela  chave antes. Agora ele larga em qualquer lugar, como se quisesse que eu encontrasse algo que não tem coragem de revelar. Alguma coisa misteriosa, cujo mistério se oferece para ser desvendado.
— Como mistério no chão do poeta.
— Mistério que oferece mais de uma leitura, pois nunca se sabe o que contém o baú.
Teve vontade de contar a Robert   as objeções sobre o namoro dos dois que o pai dela  insinuava haver descoberto. — Não gosto dessa intimidade com o Bob — dissera certa vez, Jeremias.
— Estamos escrevendo um livro.
— Um livro? Afinal, qual o foco? Moral católica tem leque restrito. Já os livros que oferecem solução para todos os problemas, vendem muito. Mas mentem. São verdadeiros apenas quando ensinam a ganhar dinheiro fácil. Realmente, se  alcançarem boa vendagem, o autor, ganha muito dinheiro.


***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.