Escolhas

Eu ando devagar pela calçada, perdido em pensamentos que me

prendem em minha própria mente. Chuto uma pedrinha e fico

observando-a até parar.

Acabei de fazer minha inscrição no concurso que pode mudar

minha vida, basta passar. Sem nenhuma cota e nem mesmo a matéria

completa, conseguir é um sonho distante, felicidade é um sonho distante.

Depois de andar por mais de meia hora encontro um ponto de

ônibus, sento no banco que tem nele. Estou no meio do nada, até porque o colégio onde me inscrevi fica longe de tudo, me pergunto se há possibilidade de passar algum ônibus aqui, ou até mesmo um ser

humano. Tem árvores na minha frente e atrás de mim, seus galhos

balançam com o vento forte que faz, me arrependo de ter vindo apenas

com uma camisa e uma calça jeans, que saudades do meu casaco. Meu

amor por essa camisa do Coldplay às vezes acaba comigo, como

qualquer outro amor.

A rua bem asfaltada está vazia, nenhum carro passando, nenhuma

pessoa na calçada, nem mesmo os pombos estão rodeando o céu, os

ratos voadores não conseguem encontrar esse lugar. Está tudo muito

calmo, odeio momentos de quietude, até porque eles são uma grande

mentira, minha cabeça é barulhenta demais para eu ter algum silêncio.

Pela visão periférica percebo que dois homens se aproximam e sentam um em cada lado meu, deixando-me no meio. Ótimo, penso, agora vou ser assaltado.

- Eu me lembro desse dia, parece que foi ontem que aconteceu – diz o que está em minha esquerda.

- Não tem como esquecer, se me perguntar até hoje sou capaz de dizer como foi – completa o da minha direita.

Eles falam como se já tivessem vivido esse momento, acho estranho mas permaneço calado, meu pai sempre diz que não é bom discordar de maluco.

- Ei, garoto – chama o da direita. Levanto a cabeça e olho para ele, não me é estranho, o cabelo é curto, alguns fios brancos misturados com os loiros, o rosto bem angular, rugas e olheiras, deve dormir muito mal a

noite. Veste uma bermuda jeans e uma camisa rosa, mas o que mais me

chama a atenção são os olhos, eles têm uma cor azul elétrica como os

meus, o que não é muito comum. Deve ter quase quarenta anos.

- Oi? – respondo hesitante.

- Oi, como vai?

- Bem, acho – por que diabos estou respondendo um desconhecido? Pelo menos acho que se ele fosse me sequestrar ou assaltar ou fazer qualquer outra coisa não iria puxar assunto comigo, contudo já percebi que sua sanidade não é algo com o qual eu posso contar.

- Ele está com medo – conclui o da minha esquerda. Isso não é mentira. É só aí que lhe dou alguma atenção. Para a minha surpresa e curiosidade, ele é igual ao outro, bem, nem tanto, seus cabelos loiros são longos e não há um fio branco, por mais que eu tenha certeza de que os dois possuem a mesma idade, eles estão presos em um rabo de cavalo. O cara tem um piercing na parte de cima da orelha, coisa que nunca tinha visto antes mas acho interessante, não tem nenhum sinal da idade ou preocupação como o outro. Fora todos esses detalhes seus rostos são iguais. Usa uma calça jeans rasgada no joelho, blusão roxo e tênis, pronto para ir a uma festa. Engraçado que seus olhos tem a mesma cor que os meus e consequentemente eram iguais aos do outro. Em toda a minha vida nunca vi alguém com os olhos parecidos com os meus e em um dia encontro duas pessoas.

- Vocês são gêmeos? – indago.

- Quase isso – responde o de cabelo curto.

- Quase isso uma ova – retruca o outro. – Não estamos nem perto

de sermos gêmeos.

- O garoto vai ficar confuso, isso é uma forma fácil de explicar.

- Fácil e errada, ele não é idiota, nós dois sabemos disso.

- Claro, e nós dois também sabemos que essa situação é difícil de explicar, ou seja, iremos pelo caminho que ele irá entender.

- Por favor parem de falar de mim na terceira pessoa – tento pedir

e sou completamente ignorado.

- A gente tá aqui exatamente para fazê-lo entender – continua o da

esquerda. – Vamos logo com isso, ficar aqui por muito tempo não é bom

e você sabe disso.

- Desde o início falei que era uma má ideia.

- É necessário, você sabe disso, eu sei disso e agora vamos fazer

ele saber também.

- Alguém poderia me dar alguma atenção? – tento de novo. Sem

sucesso.

- Eu só não entendo. Se nós dois chegamos até aqui isso quer dizer que já passamos por todos esses problemas, por que que agora temos que intervir? – pergunta o da direita. Ele parece confuso, bem, não

tanto quanto eu.

- Já te expliquei uma vez e vou explicar de novo: a cada escolha duas ou mais linhas temporais são criadas, por isso que existimos simultaneamente.

- Tá, até aí já entendi, só me explica por que temos que vir aqui

para nos salvar.

- ESPERA AÍ – grito sem paciência.

- Não precisa gritar, garoto – repreende o da direita.

- É, não somos surdos – completa o da esquerda.

- Sei – digo de forma sarcástica, - mas me digam, em que ponto

que vocês passaram a falar de viagem no tempo e quem diabos vocês

são?

– Acha que deveríamos falar para ele agora? – quer saber o da

direita.

- Mas já? – reclama o que está do outro lado. – Nem deu tempo

para brincar um pouquinho – espero que seja ironia.

- Você sabe que isso aqui não é brincadeira – repreende o

primeiro.

- Ok então. Vai falar ou eu falo?

- Pode deixar. Então, Lucas – continua ele virando para mim. – Nós não somos gêmeos, como foi dito antes, basicamente somos a mesma pessoa.

- A mesma pessoa? – pergunto debochando.

- Para de graça, conheço essa cara, já fiz muito ela.

- Tá bom. O que querem comigo?

- Salvar nossa existência – diz o da esquerda.

- A existência de vocês?

- Sim, cara, não deu para entender da primeira vez?

- Desculpa. Mas como eu vou salvar a existência de vocês? E que negócio é esse de linha temporal.

- Deveríamos explicar isso antes de dizer a missão – conclui o da esquerda na direção do outro.

- De fato, fala essa parte porque nem eu entendi direito.

- Garoto – diz agora na minha direção, - já ouviu falar em viagem

no tempo?

- Vou fingir que você está falando sério, mas já ouvi falar sim,

assisto muitas séries.

- Ótimo, então fica fácil de entender que nós dois somos você do

futuro.

- Eu não diria fácil, mas continua.

- Viemos aqui em uma missão muito perigosa e arriscada, só o fato

de estarmos nos comunicando com você põe em risco todo o universo.

- Sei. Mas por que existem dois de vocês, ou de mim, não sei a nomenclatura.

- Toda vez que você faz uma escolha, qualquer que seja, duas ou mais linhas temporais são criadas, uma para cada decisão que você poderia ter feito, e a chamada Linha Principal, que é a da opção que você preferiu.

- Faz sentido.

- Claro que faz. Agora, deve estar se perguntando o porquê de nós virmos aqui para salvar nossa existência.

- Claro, por que não?

- O caso é, pelo uso inadequado de viagem no tempo as linhas ficaram um pouco bagunçadas, ou seja, o que aconteceu com você no passado pode ser diferente do que aconteceu comigo ou com ele no nosso passado, te levando a fazer escolhas e a estar em um estado que nenhum de nós teve que passar antes, e isso é perigoso pois corremos

risco de deixar de existir caso isso continue. O que acha?

- Acho que estou assistindo muito The Flash e isso está bagunçado meus sonhos.

- Sério, só nisso que você consegue pensar?

- Isso e que vocês são loucos.

- Não acredita que viemos do futuro?

- Isso é impossível.

- Por que?

- Viajem no tempo não existe.

- Não agora, quem te garante que não virá a existir? Além de tudo, você já percebeu que eu e meu amigo aqui somos muito parecidos.

- Sim, vocês são gêmeos.

- Com olhos iguais aos seus?

- Com a mesma pinta no braço direito? – diz o da direita enquanto levanta a manga e mostra a marca, o outro faz o mesmo e por Deus, eles têm uma pinta exatamente no mesmo lugar que eu.

- Ainda não prova nada.

- Vai ser assim então? – fala o da direita – Vamos lá. Nós dissemos seu nome sem nem ao menos perguntar, sabemos que acabou de se inscrever no concurso do colégio que tem aqui perto, sua cor favorita é escarlate, mesmo que quando chegar na nossa idade vai perceber que é tudo vermelho. Você gosta de ler, não é sociável, se sente melhor sozinho, mesmo que ache sua mente barulhenta demais. Mora com o seu pai, é filho único e a mãe está na cadeia, aliás você nunca foi lá pois acha que ela não merece seu perdão, depois vamos conversar sobre isso. Você quer escrever livros e viajar por aí, sem rumo, sem olhar para trás, um verdadeiro espírito livre. Sei que está em depressão desde que sua namorada morreu há cinco meses, e desde então você é louco para mudar de escola pois tudo lá te lembra dela. Como sabe que é difícil passar por isso está considerando suicídio, e é exatamente isso que eu vim evitar.

- Isso...isso é... – não sou capaz de terminar as frases. Será possível?

- Verdade? Eu sei. Não tinha passado por isso até começar a receber essas memorias novas, geralmente elas não merecem atenção, nunca há mudanças drásticas, mas dessa vez foi necessário.

- Como você quer que eu ajude?

- Simples, basta escolher qual caminho você acha que será o melhor.

- Como isso deveria me fazer melhor?

- Se você souber o que está para acontecer nunca irá jogar isso fora.

- O que quer que eu faça?

- Apenas escute – aconselha o da esquerda.

- Deixa que eu explico – fala o na minha direita. – Nós somos você, só que do futuro e de duas linhas temporais diferentes, como já foi dito. Eu sou você se continuar morando aqui e ele é você se for morar em outro país.

- Botando em outras palavras – completa o da esquerda, - ele é você se não realizar seus sonhos e eu sou você completamente realizado.

- Isso não faz sentido nenhum – murmuro. – Só posso estar sonhando.

- Te garanto que não está.

- Então no fim das contas eu tenho que escolher entre ser um de vocês?

- Exato – diz um.

- Eu não diria melhor – completa o outro.

- Como diabos eu devo fazer isso?

- É simples – responde o de cabelo longo. – Basta decidir qual dos dois te faz mais feliz.

- Fácil, eu te escolho. Você mesmo disse que alcançamos nossos sonhos.

- Não é tão simples. Ouça a nossa história para não tomar nenhuma decisão equivocada.

- Então tá, comece.

- Bem, nós passamos nesse concurso que você acabou de se inscrever. São três anos mágicos. Bebidas, drogas, sexo, a gente não se importa mais com nada. Continuamos escrevendo. Muito, mas muito mesmo, e as pessoas adoram ler, somos bem famosos dentro do colégio. No último ano uma mulher de uma editora vem e lê uma de nossas histórias, e adivinha só.

- Ela gostou – digo.

- Ela simplesmente amou. A gente fecha um contrato com a editora e eles vão começar a publicar os textos. Tem mais, depois de já estarmos consolidados na editora eles pedem um livro. Já imaginou? Um livro?Nosso nome na capa? É tudo o que sempre sonhamos

- Conseguimos?

- Sem dúvidas. Eles publicam e o público vai a loucura. Você vai ver, será um best seller. No fim do ano recebemos uma proposta da editora para morar fora, onde teremos mais vantagens com as publicações, estaríamos indo para um mercado muito maior.

- E nós vamos?

- Esse é o ponto, mas agora minha narrativa acabou.

- E meu momento chegou – termina o da minha direita. – Eu também passo no concurso, vivo essa vida louca de curtição, escrevo o maldito livro, contudo tem uma coisa que ele não comentou e que também aparece nas duas linhas do tempo. Seu nome é Natalie.

- Natalie? – pergunto.

- O pai dela era americano. Meu jovem, ela é de longe a criatura mais linda que já vimos. Negra, cabelos cacheados, olhos de carvão. Difícil de não se apaixonar. A única coisa mais linda que a aparência é a personalidade. Pensa na pessoa mais gentil que você conhece. Agora multiplique a gentileza dela pelo tamanho do universo e você não vai chegar perto da bondade da Natalie. Nos tornamos inseparáveis, melhores amigos mesmo. Ela nos apoia em cada momento, em cada texto, enquanto escrevemos o livro, em cada ressaca horrível que nós

temos, sempre que lembramos da Nicole, ela está sempre lá. Aliás, ela é

a primeira pessoa com quem você fala abertamente sobre isso.

- Se eu me conheço bem acho que vou me apaixonar.

- De fato. Não tinha como isso não acontecer, você se apaixona, mas sabe que ela não sente o mesmo, por isso esconde.

- Como eu posso saber?

- Simples, porque ela é apaixonada por outro. Também porque sabemos que para ficar com ela tem que ser algo que dure e você sabe que de acordo com seus planos nada seu irá durar. Nós sempre falamos para ela que nosso sonho é viajar pelo mundo, nunca parar em um lugar só, conhecer novas pessoas, lugares e culturas, essa vida em um lugar só, em uma casa só, casado e com filhos, é uma vida abominável.

- É a vida do meu pai, ou era.

- Que você quer que seja bem diferente da sua. Por isso se apaixonar é válido, mas amar não, a paixão é passageira, enquanto o amor não tem fim. Ainda existem esperanças disso passar.

- Deixe-me adivinhar, nós passamos a amá-la.

- Juro para você, tentamos com todas as forças não deixar isso acontecer, mas é inevitável, somos românticos perdidos nesse mundo.

Amamos enquanto o ódio reina, sorrimos enquanto os outros choram e

choramos escondidos para não entristecer ninguém. Amar sempre vai

acontecer. Ser amado é diferente.

- Quando percebo que a amo de fato?

- No momento em que você sofre por isso. Seria bom não te ver passar por tudo isso, mas vai ser necessário, lide com a dor, lide com a sensação infinita de querer vomitar, lide com o fato de que nada mais vai passar na sua cabeça a não ser ela. Comer vai ser difícil, dormir vai ser pior. E pra fechar com chave de ouro, um dia nós iremos beijá-la.

Estaremos completamente bêbados e vai acabar rolando. Esse beijo vai

ser a coisa que você mais vai desejar nunca ter existido, e no dia seguinte nós recebemos a proposta da viagem.

- E eu aceito? – pergunto ansioso, a viagem é onde os dois pararam.

- É aí que nossa história toma caminhos diferentes – diz o da minha esquerda. – Eu engulo meus sentimentos e vou, acredito que vai ser melhor esquecer. Apago o número dela, deleto toda foto que temos juntos, a excluo da minha vida. O nosso grande amor não passa de uma

memória agora, mas estamos acostumados a isso.

- Eu vou falar com ela – começa o da minha direita. – Nos encontramos um dia antes do voo e abro o jogo, conto tudo, sem excluir nenhum detalhe, falo da dor que era, da dificuldade de vê-la todo dia, do quão complicado era ouvir que ela me amava, do quanto doía ser chamado de amigo.

- O que ela diz? – pergunto curioso

- Ela...ela diz que sente o mesmo, que desde o nosso beijo não pensava em outra coisa. Eu sou feliz, naquele momento eu sou a pessoa mais feliz do mundo. Engraçado como a dor some para dar lugar a felicidade e vice-versa.

- Você não viaja?

- Como poderia? O amor da minha vida me ama, como posso me afastar dela?

- É o seu sonho!

- É a minha felicidade!

- O sonho significa isso!

- MESMO? PERGUNTE PRA ELE ENTÃO !

Viro para minha esquerda e vejo que ele está quieto.

- Como é sua vida? – pergunto.

- Sou um escritor de sucesso, todo mundo conhece meu nome, atualmente moro na Holanda, já morei em outros 5 países. Bebo e uso

drogas constantemente, fugir da realidade é meu lazer. Perdi o contato com todo mundo da minha antiga vida, inclusive da minha família. Minha

mãe morreu e eu só soube dias depois, até hoje não fui visitar o túmulo,

nem mesmo vi meu pai. Acho que falta coragem.

- E você? – viro para o outro.

- A viagem era chance única, perco o contrato com a editora e tenho que escolher outra coisa para fazer. Atualmente trabalho dando aula de jornalismo em uma faculdade, sou casado com a Natalie há dez anos, temos um filho e uma filha. Todo fim de semana tem encontro familiar, depois que nossa mãe saiu da prisão ela voltou com o papai, e sim, também já morreu. Mantenho contato com os antigos amigos do colégio, me preocupo com contas, falta de dinheiro e tudo mais que uma vida adulta oferece.

- Como eu posso te escolher?

- É só fazer a pergunta que está na sua cabeça.

Devagar eu olho para meu outro lado. Ele está encarando o nada, absorto em pensamentos. Agora que percebo com somos iguais, me

sinto mais parecido com ele, talvez porque nós dois vestimos a tristeza,

enquanto o outro tem algo diferente. Ele é tudo o que sempre quis ser,

tem um legado, vive viajando, escreveu vários livros. É isso o que eu desejo atualmente, como posso não querer ser igual a ele?

- Você é feliz? – pergunto.

- Eu sou sozinho – é a resposta.

- Não foi isso o que eu perguntei.

- E mesmo assim é o que quer saber.

- E você, é feliz?

- Não tenho nada do que você anseia atualmente, minha vida levou outro rumo. É isso o que acontece, por mais que a gente planeje as coisas, nada acontece como queremos. Tudo depende de uma decisão.

- Se eu vou viajar ou ficar.

- Não, se você vai levantar da cama todos os dias e passar por isso que nós passamos, cada segundo, cada sofrimento, cada lágrima que nós derramamos, cada vontade de chorar sem parar, cada momento em que queríamos nos soltar, mas não era possível. Cada vez que você vai ouvir um “eu te amo” dela e vai pensar, “eu também te amo, muito mais do que você imagina, de uma forma que você jamais pode saber, até eu não ter nada a perder”. A decisão que você tem que tomar vai ser decidida toda manhã, toda vez que você escolher levantar da cama ao

invés de ficar deitado, cada vez que você escolher seguir em frente a

desistir, cada vez que você enfrentar e não fugir. A outra coisa vai ser

decidida na hora certa, você vai saber o que escolher.

- E se for errado?

- Não será – diz o da esquerda. – Até porque você já escolheu, e

eu te garanto, esse é o certo.