Melktert
Liguei para a casa de Jeremias e quem atendeu foi Juliana.
- O Jeremias não está, Marcos. Se for algo urgente, você pode tentar a casa da Francisca.
Eram dez horas da noite. E ela estava com voz de choro.
- Aconteceu algo com a Francisca? - Perguntei cautelosamente.
- Fora o fato de que agora ela é minha co-consórcia... nada.
Recordei-me que Emília havia comentado algo sobre isso em casa, mas como fora numa conversa telefônica com a colega Samara - assunto de trabalho - eu preferira não pedir detalhes.
- Perdão, mas isso é oficial? O Grande Conselho colocou você nessa saia-justa? - Não pude deixar de perguntar, já que a própria Juliana introduzira o assunto.
- Sim. Demorou 20 anos, mas fizeram valer a vontade deles; e quer saber o que é pior?
Havia algo pior?
- Acho que minha irmã está apaixonada por ele.
- Isso é grave - respondi, me lembrando da minha própria situação pessoal e da interdição de cinco anos que levara por conta da minha paixão por Rosalva. - Mas esse tipo de co-consórcio é temporário, não é? Ela ainda não engravidou?
- Engravidou... está grávida e feliz da vida - respondeu Juliana num tom rancoroso. - Tão feliz da vida, que solicitou uma prorrogação.
Tive que me controlar para não rir. Mas, pensando bem, a situação nada tinha de engraçada. E era - novamente me colocando como exemplo - extremamente injusta. Eu tinha que tomar alguma atitude em relação àquilo.
- Parece ser sério... você quer que fale algo com a Emília?
- Emília não faz parte do Grande Conselho? O que ela pode fazer por mim?
Sim, o que Emília poderia fazer num caso que era assunto interno de política reprodutiva? E que nem estava sob jurisdição dela, aliás?
- Eu ainda não sei... mas me deixe tentar, pelo menos.
A voz de Juliana soou cansada ao responder:
- Bom... não tenho mais nada a perder mesmo...
* * *
Emília chegou de um atendimento meia hora depois, cheirando a fumaça. Estendeu-se na espreguiçadeira com ar exausto, e minha primeira providência foi lhe retirar os sapatos e fazer uma massagem nos ombros.
- Nossa! Que coisa boa! - Exclamou, olhos fechados.
Fui pegar uma taça de vinho tinto. Ela cheirou o conteúdo e tomou um gole, sem abrir os olhos.
- Dia difícil? - Perguntei por fim.
- Correção de fluxo... dois cristais queimados... um morador internado, sem gravidade, felizmente.
Eu não me lembrava quando havia sido a última vez em que ela queimara dois cristais numa correção de fluxo. Enfim...
- Acho melhor ir preparar o teu banho - declarei.
Ela abriu um olho.
- Só está faltando você dizer que vai me esfregar com uma esponja para reativar a circulação...
- Não é má ideia - admiti rindo.
Ela fechou o olho.
- O que houve? - Perguntou finalmente.
- Eu liguei para o Jeremias hoje... a Juliana atendeu. Ele não está em casa.
- Jeremias está com a Francisca... provisoriamente - disse ela em tom neutro. - Pensei que você soubesse...
- Não somos mais tão próximos, desde que nos mudamos de Vila Nova. E isso já faz o quê? Oito anos?
- Quase isso, acho.
Prossegui, em tom cauteloso; o campo à frente era minado.
- Bem... Juliana suspeita que a irmã apaixonou-se por Jeremias e que tentará não honrar o término do co-consórcio.
Emília riu, baixinho.
- Paixão é mesmo uma coisa absolutamente sem lógica... Francisca passou 20 anos fugindo do homem que lhe era destinado, e de repente descobre que ele sempre foi perfeito para ela?
Pensei em Rosalva. Só que Rosalva não me era destinada, sutil diferença; cerrei os dentes. Como se houvesse lido os meus pensamentos, Emília abriu ambos os olhos:
- E qual seria o seu interesse nesse caso, posso perguntar?
- Você não acha errado que alguém burle a lei apenas porque está cumprindo... com 20 anos de atraso... o que determina a lei?
Ela apoiou-se nos cotovelos e me encarou, muito séria. Depois, deixou o corpo desabar na espreguiçadeira, mas com os olhos bem abertos.
- Isso está me parecendo pessoal - afirmou, em tom categórico. E como eu não dissesse nada, acrescentou:
- Mas eu não gostaria de ter que invocar uma interdição para cuidar disso. Até porque, você sabe... lá não é minha jurisdição.
* * *
No dia seguinte, eu e Emília pegamos o trem das sete da manhã para Vila Nova. Emília não parecia muito feliz, é verdade.
- Entende que estou fazendo isso única e simplesmente por sua causa, não é? - Comentou ela, quando nos acomodamos no vagão de primeira classe, com lotação apenas parcial.
- E eu te amo por conta disso - respondi, dando-lhe um beijo.
- Você avisou Juliana de que estávamos a caminho?
- Sim, e passei a lista de compras por telefone. Ela vai estar nos esperando com todos os ingredientes.
- Todos... menos um - sussurrou ela.
- Falta alguma coisa? - Indaguei intrigado.
- O ingrediente secreto - retrucou Emília sorrindo. Fechou as cortinas ao seu lado e se aninhou contra mim, olhos fechados.
- Vou tirar um cochilo. Me acorde quando chegarmos lá.
* * *
Estávamos os três na cozinha: eu, Juliana e Emília. Tecnicamente, eu é quem iria fazer a receita de "melktert", uma espécie de pastel de nata, a sobremesa favorita de Jeremias.
- Diga-se lá o que se quiser dizer dos homens, - comentou Emília encostada no balcão da cozinha segurando uma xícara de chá - mas eles são ótimos cozinheiros!
- Obrigado pela parte que me toca - agradeci, enquanto jogava os ingredientes na batedeira. - Agora será que as damas poderiam se sentar para não atrapalhar o meu trabalho?
Sentaram-se na copa, tomando chá e comendo financiers. Da padaria, mas estavam aceitáveis.
- Vocês eram felizes? - Ouvi Emília perguntar à Juliana.
- Tanto quanto pode-se ser feliz num consórcio arranjado porque uma das partes terceirizou a sua responsabilidade - respondeu ela num tom duro.
- Isso me faz parecer que não o quer de volta, Juliana...
- Eu o quero de volta porque isso é o certo! - Exclamou ela.
- Acho que a Francisca o ama mais do que você... capaz dela conseguir uma prorrogação do co-consórcio e o Grande Conselho aceitar, porque temos interesse direto nisso...
- Deusa! Como pode ser isso! Não há mais justiça nesse mundo?! Esse homem foi meu durante vinte anos e agora tenho que suportar ser humilhada por minha própria irmã... só porque... só porque...
O protesto de Juliana acabou num choro convulsivo. Em seguida, o grito de Emília:
- Marcos! O ingrediente secreto!
* * *
Pegamos o primeiro trem da tarde de volta para casa e pedimos o almoço no vagão-restaurante. Emília me pareceu triste, mas conformada.
- Detesto ter que usar esses expedientes, mas a atitude da Francisca merecia uma punição. Você fez bem em me repassar esse caso.
Hesitei antes de perguntar:
- Mesmo que os meus motivos tenham sido menos do que altruístas?
Ela acariciou o meu rosto.
- Ainda assim.
- Mas se é do interesse do Grande Conselho, Francisca ainda poderá ter uma segunda chance com Jeremias - ponderei.
- Francisca poderá ter uma segunda, uma terceira e até uma quarta chances... mas o interesse do Conselho nela é tão somente reprodutivo. Essa fase está prestes a se encerrar. E se desconfiarem que ela tem outras intenções... principalmente prejudicando alguém do seu próprio sangue, pode ter certeza de que essa questão não será resolvida somente com uma interdição de cinco anos.
E disse isso me olhando bem no fundo dos olhos, para ter certeza de que a mensagem fora recebida e entendida. Sim, fora. Mas sustentei o olhar dela, assim mesmo:
- Você usou esse... expediente... com a Rosalva?
Ela me encarou, entre assustada e indignada.
- Não! Como pode pensar... não! Nem por um segundo! Rosalva era... é minha amiga!
- E você sabe o que é melhor para ela, não é? - Perguntei baixinho, com um sorriso triste.
- Eu nunca seria capaz disso - respondeu ela entredentes.
Eu avançara muito para recuar agora.
- Há quanto estamos neste consórcio? Dez anos? E você nunca engravidou, todo esse tempo. E eu tenho uma filha... com a Rosalva.
A expressão com a qual ela me olhou era de dor. Mas eu ainda tinha uma última pergunta a fazer, mesmo que não tivesse resposta.
- O nosso consórcio foi mesmo uma determinação do Grande Conselho?
Ela abaixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.
- Este não é o lugar para falarmos disso. Espere até chegarmos em casa...
- Eu vou esperar - respondi. - Eu vou esperar.
Pelas janelas do trem, desfilavam campos de trigo maduro iluminados pelo sol da tarde... o mesmo tom dos cabelos de Rosalva.
- [07-08-2017]