Uma grande perda

Aos 40 anos de idade, olhos vermelhos, cara amassada de tanto chorar, sentada numa cadeira de braços como uma rainha no fundo da sala de visitas, Dona Francisca era a mulher mais bela da casa naquela noite. O vestido de luto, preto, comprido, mangas longas, assentava-lhe tão bem que quase parecia um vestido de baile. O cabelo, num tom de ouro velho, penteado de forma intrincada com tranças que lhe davam volta à cabeça, lembrava uma coroa. Os visitantes se aproximavam, beijavam a mão que ela lhes estendia sem expressão e lhe diziam algumas frases rituais de conforto. Algumas familiares eram íntimas o suficiente para inclinar-se e lhe beijar o rosto. E nada além disso.

Pouco antes de meia-noite, a reverenda ministra Samara chegou, vestido branco, estola roxa sobre os ombros, acompanhada de duas acólitas adolescentes, também vestidas de branco, grinaldas de flores silvestres nos cabelos. Os presentes fizeram uma vênia respeitosa, erguendo-se e flexionando os joelhos aqueles que estavam sentados; com exceção notável da própria Francisca, que permaneceu em seu assento e apenas inclinou ligeiramente a cabeça em saudação.

A reverenda ministra olhou ao redor e depois, bateu palmas.

- Grata pela presença de vocês, agora podem ir para suas casas. Quem residir aqui, queira, por favor, se recolher. Tenho assuntos oficiais a tratar.

Não houve tempo para despedidas formais. A maioria apenas fez de longe uma vênia de cabeça para Dona Francisca e foram saindo porta afora. Os dois filhos de Francisca, meninos ainda, subiram as escadas para o quarto que dividiam, sem que fosse preciso ordenar novamente. Na sala, restaram apenas Francisca, a reverenda ministra e suas acólitas. Samara ordenou às moças que aguardassem na antessala e fechou a porta, sentando-se numa cadeira de frente para a anfitriã.

- Bem, Francisca, eu lamento terrivelmente a sua perda, - disse Samara - principalmente sabendo da sua luta para ficar com Arthur. Mas vim aqui hoje lembrar-lhe de que você está em falta comigo.

O rosto de Francisca contraiu-se. Se de dor ou raiva, era difícil dizer. Quando respondeu, sua voz saiu serena.

- Estou ciente das minhas responsabilidades, reverenda ministra.

Samara fez um gesto de cabeça negativo, sacudindo os longos cabelos negros.

- Se estivesse realmente consciente das suas responsabilidades, Francisca, jamais teria assumido um consórcio com Arthur. Desculpe, sei que é duro ter que ouvir isso, particularmente hoje, mas você tinha consciência do tipo de problema que estava atraindo para a sua vida.

E inclinando o corpo para a frente, sussurrou:

- Você vai ter que resolver isso logo. A cada mês que passa, a biologia lhe fica mais desfavorável.

O rosto de Francisca contorceu-se. Agora, realmente parecia ser uma reação de dor.

- Como posso pensar nisso, quando acabo de sepultar Arthur?

Samara inclinou-se ainda mais para a frente e segurou o rosto de Francisca entre as mãos.

- Você já teve toda a felicidade que queria ter nesta vida. Agora, chegou a hora de fazer o trabalho para o qual veio a este mundo.

* * *

Não foi surpresa para ninguém na vila quando, na semana seguinte ao sepultamento de Arthur, Dona Francisca anunciou o seu consórcio com Jeremias. Era sabido que Jeremias fora o escolhido pelo Grande Conselho para esta tarefa, 20 anos atrás, mas Francisca, caprichosa como ela só, contornara a atribuição apresentando uma carta de complementaridade do seu escolhido, Arthur. O Grande Conselho não ficara exatamente convencido, mas a mãe de Francisca batera o martelo alegando que possuía outras filhas tão capacitadas quanto a própria Francisca. Finalmente, Jeremias havia firmado consórcio com Juliana, irmã caçula de Francisca. Isso significava que, agora, ela seria co-consorciada da própria irmã, uma situação no mínimo embaraçosa para ambas.

Ainda de luto, Francisca agendou um chá com a irmã, para discutirem o assunto antes mesmo de ver Jeremias, que estava fora da vila à negócios. Juliana chegou à residência da irmã, com um ar de desgosto estampado no rosto. Trocaram beijos no rosto por mera cortesia, e sentaram-se em cadeiras opostas à mesa de chá servida.

- Encomendei financiers na padaria, como você gosta - disse Francisca, indicando os bolinhos numa cesta e esforçando-se para ser amável.

- Sim, fico grata - respondeu Juliana, pegando um e dando uma mordiscada. Tomou um gole de chá e complementou, em tom casual:

- Eu liguei para o Jeremias e dei a notícia a ele.

Francisca baixou o olhar. Depois, encarou a irmã.

- E como ele reagiu?

Juliana comeu mais um pedaço de financier, sem pressa.

- Jeremias é reservado. Mas, no fundo, deve ter ficado feliz: ele sempre te desejou, e agora vai ter você. Pelo menos, algumas noites por semana...

Francisca remexeu-se na cadeira, sentindo-se desconfortável.

- Você acha que eu gosto disso?

- Imagino que não goste - replicou Juliana, sem se abalar. - Acabou de perder seu consórcio legítimo e agora vai ter que dividir sua cama com alguém que mal conhece por imposição do Grande Conselho. Fico pensando se não teria sido melhor que houvesse feito logo esse consórcio com Jeremias, 20 anos atrás, dado o que eles queriam e depois ter ido viver com Arthur. Ninguém estaria lhe pressionando agora, irmã.

- Não é fácil assim como você pensa - retrucou Francisca, em voz baixa.

- Agora também não interessa - atalhou Juliana. - Tente engravidar logo, é só o que posso pedir. Faça uma tabelinha dos seus dias férteis e eu libero o Jeremias para passar as noites que precisar com você.

E, depois de mais um gole de chá:

- E, por favor, lembre-se: ele só vai estar contigo por imposição do Grande Conselho. Tente não fazer com que a estadia dele seja mais agradável do que o necessário.

Francisca ficou lívida.

- O que você está querendo dizer, irmã?

- Você me entendeu - respondeu secamente Juliana.

* * *

Convocado para sua primeira noite com Francisca, Jeremias jantara com sua nova família co-consorciada. Os meninos haviam estranhado a presença dele ali.

- O tio Jeremias vai ser o nosso pai agora? - Questionou Adonias, o filho mais velho.

- Não. O tio Jeremias é apenas o meu co-consórcio - disse Francisca. - E isso não vai durar muito tempo... espero.

E voltando-se para Jeremias, que ouvira a explanação em silêncio, acrescentou:

- Desculpe.

- Não há pelo que se desculpar - respondeu ele, diplomaticamente. - Sei que jamais foi seu desejo que eu... bem, entrasse na sua vida. Pelo menos, não desta forma.

- Eu não desgosto de você, Jeremias - retrucou Francisca, lembrando-se da última conversa com a irmã. - E como creio que a recíproca é verdadeira, farei o possível para que possa cumprir a sua... tarefa... da melhor forma.

Terminado o jantar, louça lavada e guardada por Jeremias, Francisca foi aguardá-lo no leito. Ele entrou no quarto, depois de escovar os dentes, vestindo um roupão felpudo e a encontrou sob as cobertas, só a cabeça de fora.

- Espero pelo menos que você não tenha colocado um camisolão com um buraco nas partes... - comentou ele, em tom casual.

Ela sorriu, sem graça.

- Não... olha, estou sem nada. Mas fico envergonhada de me exibir com a luz acesa.

Ele sentou-se na beira da cama e estendeu a mão para ela. Ela descobriu um braço e pegou a mão dele. Ele levou a mão aos lábios e a beijou.

- Você é linda - declarou.

* * *

Era já o terceiro mês de co-consórcio. Francisca, cabelos em desalinho, estava deitada na cama com Jeremias, a cabeça contra o peito cabeludo dele. Tão diferente do peito musculoso, mas liso, de Arthur...

- Você vai ter que contar para ela - disse Jeremias.

- Eu vou contar... algum dia - riu Francisca.

- É sério - prosseguiu ele. - O Grande Conselho já sabe que você está grávida, e que é uma menina, exatamente como eles queriam. Nós já não deveríamos estar mais juntos...

- Você não me quer mais? - Suspirou ela.

- Não é isso, você sabe... mas ocorre que estamos enganando alguém de quem ambos gostamos, a sua irmã. Em breve, a sua barriga vai começar a crescer e não poderemos ocultar mais a verdade.

- Sim... é um fato - ponderou ela. - Mas e se...

Fez uma pausa, enquanto matutava.

- E se oficializássemos uma parceria?

Jeremias correu os dedos pelos cabelos dela.

- Juliana teria que concordar. Duvido que o faça.

- Não se o Grande Conselho determinar!

Jeremias a encarou com admiração.

- Acha que eles concordariam com isso?

Ela beijou o peito dele.

- Bem... eu posso me voluntariar para ter mais uma menina. Para isso, precisarei de pelo menos mais um ano.

E erguendo a cabeça para olhar nos olhos de Jeremias:

- É tempo suficiente para que Juliana se acostume com a ideia de ter que dividir você...

- [06-08-2017]