Pra Quem Eu Vou Falar De Amor?

Ah lá! É isso que ele quer! É só isso! O dia todo, aquele rádio colado no ouvido, ouvindo a mesma música, e as desgraceiras que essas notícias falam o dia inteiro. Ouve vários jornais, sempre as mesmas notícias, mas num sai daquele sofá. Ah lá!

E eu aqui na cozinha. O tempo todo em cima dessa pia, lavando prato, copo, e passando pano nessa geladeira branca que a Ana Luiza deu pra gente. Não se dá geladeira branca. Ela tá amarelada. Já pedi pra ele tentar pintar de azul, que nem aquela azul Brastemp que a gente tinha quando casamos. Mas isso tem tempo. Nesse tempo, ele nem rádio ouvia tanto assim. Deve tá variando. Tá ficando é louco! Velho e louco. E num fala mais. Tem isso também. Parece que a vitrola que ele engoliu quando novo deu defeito foi de vez. Tem uns meses que ele num fala. Tem meses mesmo! Simplesmente acordou sem voz. Aí se sentou naquela poltrona, e lá ficou ouvindo esse rádio. Só levanta para ir ao banheiro. E para dormir. Comer a escrava leva a comida até o rei. Ah lá... Traste! Ah lá! Se aposentou cedo... Pra isso! Ouvir rádio!

Essa sujeira num sai do prato, olha! Maldito Bombril! Já foi bem melhor já! Agora tira uma unha, mas num tira a gordura...

Ô Miro! Cê precisa ir lá na casa da Beatriz conversar com

teu neto, viu? O garoto num quer saber de estudar, e só fica no celular, e conversando com gente esquisita da escola! Esses dias Beatriz disse que viu ele no banheiro tirando foto do próprio pinto, para depois enviar pra menina! Agora tu vê! Minha época tinha isso? Essas crianças tão é perdida... Ah lá! Tá nem aí pra mim!... Antigamente, antigamente era um gentleman. Vinha aqui pra casa, e a gente ficava vendo o programa da Jovem Guarda na Tv Record. Nem pensava em ser mãe. Papai ficava sentado de um lado, mamãe bem no meio da gente, e só na hora de levar esse traste no portão, lá na casa da Tijuca, perto da Rua do Matoso, é que ele se aproveitava e me beijava. Velho safado! ... Ô Miro! Como é que deve tá aquela casa na Tijuca, heim? Ouvi dizer que virou farmácia. Cê viu isso?... Ah lá! Mas deve tá é surdo esse velho. Deve tá! ...Ah lá! Nem se mexe, menino!...Eu vou te contar viu!

Eu devia ter saudades. Mas eu acho que num tenho, Miro! Cê mudou, homi! A gente tá velho, e cadê a história? Quase sessenta anos de casados! Quase! E hoje tu nem me fala! Só ouve. Acho que preciso ir viajar, me afastar! Mas Beatriz disse que acha perigoso eu ir sozinha. Ouviu, Miro? Pode ser que eu vá pro Norte. Ou sei lá, fazer um cruzeiro com o Roberto Carlos. Era louca nele na época da Jovem Guarda! Era nele, no Jerry Adriani, e no Erasmo...Ah, o Erasmo! Aquilo era um pão! Pão não... Como é que a Larissa chama os meninos bonito, Miro? É... É... Filé! Fi-lé! Os anos passam, as gírias mudam, mas continuam sendo comida. No final, todo mundo quer é se comer. Esse mundo tá louco. Esses dias Beatriz disse que o Thiaguinho tava no banheiro era tentando tirar foto do pirú, com o telefone, pra mandar para uma amiguinha da faculdade. Agora tu vê! Menino me cai no banheiro, quebra a cabeça, olha o problema!

Eu é que num vou sair daqui pra ir cuidar de marmanjo tarado! Esse garoto tem que ter limites! Quase vinte oito! Vinte oito eu já trabalhava de datilógrafa no Banco do Brasil, lembra? O dinheiro era o Cruzeiro. Época boa... Eu corria atrás! E tu também, né? Era mecânico, né?... Heim, Miro?...Ah lá! Tá surdo!...Mas se tá surdo, porque fica com esse rádio no ouvido o tempo todo?... Miro? Ô, Miro?... Nossa Senhora, num é possível! Um mês já nesse silêncio.

Eu vou pegar minhas coisas e sair dessa casa. Já era é tempo. Vou pra Iguaba! Paraty! Ou então lá em Madureira mesmo, comprar uns cremes. Vou mudar o visual! Num vou ficar aqui velha, acabada, nessa cozinha...

Tá com fome, Miro?... Cê num almoçou esses dias todos! Vai ficar anêmico! Se Beatriz e Ana Luiza vierem aqui no domingo, eu vou contar bem pra elas! São suas filhas! Também tem que se meter nas suas loucuras! Euheim! Já tô velha! Qualquer dia morro, ninguém vai interceder por mim não, Miro! Ah lá... Só ouve! VOCÊ SÓ OUVE! O dia em que eu cair dura nessa cozinha, aí eu quero ver! Aííí eu quero ver... Vou até tomar meu remédio, sabe? Você me aborrece calado! Coração tá acelerado!

Quantas gotas são mesmo, gente? Agora num sei! Será que Beatriz lembra? Num tem escrito nada! Aquele médico me receita calmante. E num diz as gotas! Ele acha que tô vendo coisas. Médico estranho. Tem nem diploma se duvidar... Miro precisa jantar,gente.

Miro? Vai jantar, não? ...Ah lá...Sumiu... Miro?...Ah, mas vai ficar sem comer então!

(...)

- Alô! Oi Beatriz! É Ana Luiza! Tudo bem?... Tô bem sim e você?... Ah, que bom! E Thiago?...Entendi!... Escuta, eu conversei com o Hélio, ele num acha legal a gente deixar mamãe sozinha em casa, Beatriz!... Eu sei, mas depois que o papai faleceu... O remédio lá vai dar jeito nisso?... Engraçado é que os dois brigavam tanto, né? Papai ria a beça. Ele adorava o jeito ranzinza dela. Morreu do jeito que queria. Sentado na poltrona, ouvindo música. E ela lá. Até hoje conversa com a poltrona... Dá pena deixar ela sozinha lá, Beatriz! Ela até hoje conversa com ele. Até hoje! Reclama, xinga, conta história...Tudo sozinha, já viu isso? É muito bonitinho!... Vou passar lá hoje e ver se ela tá tomando o remédio direitinho! Tá bom? Beijos. Tchau.

FIM

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 06/08/2017
Código do texto: T6076177
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