uma luta por dia

     É incrível como o mundo resolve dar suas voltas.
     A felicidade dorme ao seu lado, e no outro parece que nunca foi encontrada. Que nem pistas para procurá-la foram te dadas, tampouco a sensação de que havia algo necessário a ser consertado. A guerra acabara há dois anos, no entanto seus ferimentos ainda não cicatrizaram. Diabos, que guerra não nos deixa vulneráveis? Sequelas de tudo o que foi visto e obrigado a ser feito? O perigo soava iminente. Poderia vir de qualquer canto, flanqueando as defesas tão bem construídas—pelo o que achávamos. Depois da guerra, depois desses longos dois anos, as minhas ainda se encontravam abertas. Pisava nelas com desdém, acreditando que se consertariam sem a minha ajuda, que eu não precisaria mais em longo tempo. Assim veio a surpresa. Um tiro de um franco-atirador escondido entre árvores do outro lado de um rio teria sido menos sutil. Árvores tão lindas quanto seria seu descobrimento. Você é derrubado, cai em uma cama que na hora jura ser feita de rosas. Pode até ser que realmente seja, até que se levanta, com todo o esforço que te resta, para notar os espinhos em suas pernas, e agonizar não só por elas, pelo buraco do tiro também. Pelo sangue pintando as flores, as deixando mais vivas do que uma vez já foram, também.
     Apesar de nova, Luísa lutara aquela guerra. Não sei se foi na mesma posição que a minha, só que era visível em seu rosto. Em seus olhos claros, castanhos esverdeados, olhos de galáxias profundas, intermináveis, que deixariam na história de nosso mundo marcas importantes a serem lembradas. Era visível em seus lábios quando eu os encarava antes de receber seus beijos. E cada vez que isso acontecia eu ouvia uma história diferente. A forma como ela andava me lembrava da cautela necessária na guerra, ao redor das crateras feitas por explosões de ambos os lados. As baterias inimigas sempre faziam mais estragos, enquanto eu me perguntava se as nossas causavam alguma coisa que não fosse motivação ao inimigo para terminar este inferno.
     Em nossos encontros era difícil não se lembrar das granadas, das rajadas de metralhadoras que rasgavam o silêncio, deixando um cheiro de morte por todo o ambiente. Os sorrisos espontâneos que nasciam em seu rosto me colocavam em posições de dúvida em relação se ela sentia ou não alguma sequela. Sua presença, apesar de alguns episódios de lembranças de grandes dores, me transmitia alguma paz interna. Acalmava meus ânimos.
     “Sabe. . .” andávamos de mãos dadas certa vez.
     “O que?”
     “Você é muito quieto,” me reclamou. “Por que não fala alguma coisa?”
     “Não sei o que dizer, desculpe.”
     “Qualquer coisa! Pode ser qualquer coisa!”
     “Tipo o quê?”
     “Sei lá,” ela respondeu fazendo uma careta pensativa. “A primeira coisa que vier em sua mente! Isso! Fale isso. A primeira coisa que vier em sua mente.”
     Nela não passava nada. Tamanha foi a pressão daquelas palavras.
     “Ah, então deixa. Tudo bem você não quiser—”
     “Você é linda,” foi o que respondi, interrompendo-a. “A primeira coisa que me veio foi essa. Sua beleza, e como ela me afeta.”
     Desde então, quando o silêncio fazia sua entrada, eu fazia o mesmo comentário. Me parecia não só certo, mas necessário.
     Tivemos dias de chuva, tardes quentes e noites sem a companhia um do outro. Contemplávamos pela manhã. Quando os ventos ficavam fracos e nossas barrigas cheias, saíamos para afastar aquela solidão. Nossos encontros era em uma praça. Longe dos terremotos de palavras ácidas e desnecessárias, e enchimento de saco. Essas escapadas da realidade me lembravam de alguns anos atrás. Da guerra, e de seus conflitos internos.

 
***

     Temos que acreditar nessas coisas, de uma hora pra outra. Agir feito um recém-nascido, uma criança desconhecedora das maldades da vida. Por uma curva à direita, ou talvez em seu sentido oposto. À esquerda me soava mais correta. De qualquer forma, lá estávamos. Nos afastando dos horrores, das poças de sangue. Nosso sangue.
     Já dentro daquele transporte, e bem acomodados, ela abriu a própria bolsa e dela tirou um livro. De minha mochila eu peguei uma cartela de remédios, calmantes, e engoli a seco dois comprimidos. Devo agradecer ao médico, meu querido amigo Alessandro, por essa pequena ajuda para dormir. Eram poucos os livros que ela lia a coincidir com meu gosto. Reconheço a importância dos Best Sellers, dos romances infanto-juvenil, apelativos para o capital. Ela era inteligente demais para aquele tipo de prosa, onde mundos fantasiosos acobertavam a brusca realidade e monstros disfarçavam o pior da raça humana. Todos precisam de um entretenimento. Isso me repugnava. Essa prisão ao passado. Correntes fictícias, invisíveis, presas nos tornozelos até o sol aparecer com seu brilho causando a euforia dessas eternas crianças. Não deve existir maior tristeza do que essa. Esperar algo magnífico de uma sexta-feira à noite. Precisar se afastar do mundo em que se vive para viajar a um universo onde tudo te agrada e você é feliz, mas tão feliz e alegre e animado quanto um apresentador de programa infantil vestido numa roupa gigante roxa de um bicho morto há trilhões de anos. Apoiei minha cabeça no encosto da poltrona e a reclinei, a fim de enganar meu cérebro para pensar que estava deitado e descansá-lo, como meu corpo. A agitação era teimosa. Não me custa tentar dormir um pouco, pensei.
     Como viemos parar nesse estado? Por quais ruas corremos? Quais trilhos? A fumaça escondia o caminho, tampava nossa visão para o que viria a seguir. Nossas mãos iam se soltando, e ela, com isso, fazia o mesmo. Tínhamos lugares a conhecer, rostos novos a ver, músicas para nos emocionar juntos e longe de tudo aquilo que juramos a esquecer. Eu sentia isso, e acreditava que com ela acontecia o mesmo. O cansaço, a desistência, a falta de esperanças. Apreciarmos o tempo a sós, distante do front e sua estupidez que nos atormentava, esse era nosso objetivo.
     A viagem não demorou. Duas horas, três quebrando o relógio. Dormir foi outra batalha travada. Os remédios não facilitaram, não fizeram seu trabalho. Fiquei de olhos fechados, controlando minha respiração, pela maior parte do tempo. Meu coração não parava de bater rápido, forte. Capaz de sentir cada glóbulo vermelho arranhar minhas veias. As batidas vinham feitas as granadas que caíam daquele céu acinzentado. Cada batida era uma explosão, um ataque diferente do inimigo do outro lado. Nessa guerra não tinha trincheiras, não tinha elevações. O inimigo vinha em número maior. Sempre vinha. E nosso poder de fogo não se comparava. Continuávamos porque era a única coisa a ser feita. Porque alguém deveria fazê-la. Deveria enfrentá-la, mesmo que custassem nossas vidas em seu processo. As granadas me deixavam nauseado, mais aflito. O cheiro delas, da pólvora queimada e de suas causas. Agitado por dentro, sem lugar para correr ou buraco para me esconder. Meu peito estava aberto, desejando que as horas corressem e decolassem para um voo até nosso destino final sem mais nenhum tempo a perder. Por fora eu lutava um esforço em vão, parecendo ter um cansaço que nenhuma noite de sono poderia curar, por mais grandiosa que fosse. Expulsei um ar frio, pesado, de minhas narinas. Imaginei que um fumante em uma corrida olímpica de cem metros rasos se sentiria daquele jeito agora. Pulmões encolhidos, surrados de tanto esforço para manter o organismo funcionando. Esforço para se manter vivo, ou consciente. Levantei-me dali e fui ao banheiro. Nossos assentos eram os últimos, o que me facilitava demais, sem passar por olhares, sem os julgamentos tão importantes de pessoas desconhecidas com uma enorme chance de nunca mais encontrá-las uma segunda vez. Dentro do banheiro eu lavei meu rosto e só. Queria me refrescar. Fazer o uso do sanitário era complicado com todo aquele balanço, que porcamente me ajudava por dentro. Já de volta a meu assento, minha companhia tinha fechado os olhos. Eu queria conversar com ela, mas sobre o que falaríamos? A guerra? O perigo constante das bombas? Quanto tempo temos? Um assunto impossível de ignorar. De vez em quando passava por minha cabeça que essa guerra tinha nos estragado. Uma discussão seria mais provável de acontecer, independente do assunto. Morrer na lama pelas decisões de outras pessoas, isso não me parecia muito nobre. Covardes, aqueles que se escondiam em discursos hipócritas. Transando pela virgindade. Esses brinquedos a nós dados fazem barulhos demais. Ecoavam por dias. As paranoias, assuntos limitados, devastados e sensíveis. Tudo capaz de destruir nossos porquês a essa fuga. Beijá-la foi o que me sobrou, mas também não seria como antes, como quando eu a visitava no hospital, a fim de ter seu perfume preso em meu nariz ao invés do cheiro de cadáveres e pólvora. Beijá-la foi o que me sobrou, parecendo uma obrigação, a única coisa a ser feita, um eterno pedido de desculpas utilizada por nós dois da mesma forma. As palavras saíam de sua boca em amargura, e nisso eu me questionava se algum dia, alguma vez, já foi doce. Pode ser que tenha. O fim do mundo como imaginamos. Com esse gosto nostálgico do início da felicidade e a realização de seu tempo perdido, que jamais irá voltar.

 
***

     Luísa me levava àquela praça. Lar de nossos amores, de nossas fantasias. Tranquila até a saída dos alunos de uma escola bem próxima. Tinha uns bares ao redor, porém os bêbados em geral não nos incomodavam, as músicas eram aturáveis, e o sol pouco perigoso, comparado aquele de minha terra natal. Suas mãos eram ásperas, e eu adorava senti-las em minha pele. Ao contrário de sua personalidade. Macia, como sonhamos que as nuvens sejam.
     “Você sabia que eu fico te olhando o tempo todo?”
     “Sim,” respondi de cabeça baixa. “Eu sei.”
     “Como?”
     “Não é difícil. Eu começo a ficar com frio, como se seus olhos estivessem a me despir.”
     “Nossa! E você lê mentes também?”
     “Então, é um antigo truque.”
     “Tá, mas por que você não faz o mesmo?”
     “Como assim?”
     “É, poxa!”
     “Alguém tem que olhar pra frente, cuidar de nós dois, caso algum carro, um ônibus, ou quem sabe um trem, apareça!”
     “Um trem?”
     “Exatamente.”
     “Deixa de ser bobo,” ela soltou uma leve risada, voltando a me encarar logo após. “Mas eu não me importaria de morrer ao seu lado.”
     Passamos a nos encontrar todos os dias naquele lugar. Quando a chuva não nos impedia e os ventos estivessem calmos, apesar de sentirmos algo nos soprando. Os sussurros tornaram-se gritos de um angustiado frenesi. Em casa, depois de deixá-la no ponto de ônibus, meu céu conseguia brilhar por ainda meia hora, o tempo dado para as tempestades me atingirem novamente. E eu deitava no sofá da sala maravilhado por todo esse tempo. Sem desperdiçar um segundo sequer desse sentimento que eu jurava ter perdido no front, ou atrás das linhas inimigas. Às vezes a guerra faz isso: esquecemos o que há de melhor em nós, devido a tanto medo, desespero e lágrimas presas. Nós precisamos ser fortes, bravios, pois é questão de tempo até as surpresas da vida nos quebrar. E quando isso vier a acontecer já estaremos preparados. Abraçaremos a tristeza, e qualquer outro sentimento, como se fosse uma velha amizade. O mundo tem desse tipo de coisa. Quem não estiver preparado, quem não enfrentá-lo com a devida coragem, o mundo fará seu trabalho. E aí será tarde demais. Aprendi isso ao decorrer dos acontecimentos, das escolhas certas e das erradas. A adaptação também é constante, o que não quer dizer que seja boa. Em alguns casos a morte traz maior liberdade. Absoluta, pode ser que seja. Vi isso com Igor, o nosso capitão. Creio que seus superiores não gostavam dele, ou de nós. Davam-nos situações cuja morte soava fácil, inconsequente. Perante a rendição o mais viável era a desistência física, visando a saúde psicológica. A tortura da guerra já nos era suficiente. Igor fazia o que tinha de ser feito, o que foi mandado. Quando a guerra acabou ele voltou como muitos de nós. Eu ainda o via vez ou outra, sentado em alguma praça, de frente para alguma igreja, conversando com alguma pessoa ou encarando o horizonte. No entanto, não tinha muita esperança em seu semblante, diferente de quando cruzávamos o Inferno. Faltava algo. Todos nós sentíamos o mesmo. Saber não era difícil, mas admitir muitas vezes acabava nos arrancando gritos, agonias profundas de socar paredes, de um suicídio com o licor. A televisão muito menos ajudava.

 
***

     Me aconselharam a tirar um aprendizado destes episódios sangrentos que tive em minha vida. Claro, fiz isso. A guerra é o pior jeito de resolver política. Para meus erros, minhas escolhas de que me arrependo, encher a cara até esquecer o caminho de volta para o que um dia já foi minha casa, isso sim me parecia a melhor coisa a ser feita.
     Sentar no corredor não me impossibilitava em assistir a paisagem do outro lado da janela. As árvores, as casas, pessoas andando com suas vidas. A guerra não passara aqui. Pode ser que essas pessoas nunca verão suas cores. Mas elas sabiam de sua existência. Os rádios transmitiam as notícias, os correspondentes não sabiam fazer outra coisa a não ser escrever suas novidades, e até mesmo os filmes deixavam todos cientes. Uma mistura de tristeza com ansiedade me atingiu. Me veio uma dor maior que aquela do ferimento que acertou minha perna meses atrás. Um peso súbito de que o fim estaria próximo? Lembrei de meu avô que, mesmo ocasionalmente traindo sua mulher em suas juventudes, desistiu de viver quando aquela a quem ele jurou amor eterno faleceu. Entrou em uma extensa depressão. Um homem que havia lutado bastante por uma boa parte de sua vida, derrotado pela falta, pela saudade, do sentimento que é doce e amargo ao mesmo tempo. A sensação de perda.
     Eu não tinha notícias do front há um longo tempo. O dia seguinte pode ser menos louco, pensei. O sol aparecia no meio das nuvens brancas. Pela primeira vez em dois anos eu vi aquele sorriso perto da janela, ao meu lado, e me perguntei como seria possível.
     “O que foi?” ela me perguntou. “Tem alguma coisa errada?”
     “Não,” respondi, tentando suavizar como antes.
     “Por que você tá com essa cara então?”
     “Bom, infelizmente é a única que tenho.”
     “Você entendeu, seu boboca.”
     “Sim. E se me fosse possível, eu teria o rosto daquele ator. . . Qual o nome dele mesmo? Daquele filme. . . Aquele loiro, do filme baseado num romance a respeito do modo que levamos a vida. . . O escritor do romance é amigo do meu favorito. . . Ah, merda. . .” ela sorriu. Raramente tínhamos momentos como esses. Talvez, em tempos anteriores, poderíamos ter tido repetidas e repetidas vezes. “Eu queria muito tirar uma foto de ti agora,” era como se eu nunca mais veria tal grandeza. “Ou melhor: eu fotografaria você acordando.”
     “Mas por quê?”
     “Porque seu rosto é daqueles que não importa a hora do dia, ele está sempre radiante. E pode ser que eu jamais veja tanta beleza assim outra vez,” um pouco pessimista, eu sei. E ela também sabia, pois nossa história nunca foi tão esperançosa a fim de um e eles viveram felizes para sempre. “Somente seu boboca, né?”
     “Sim. Somente meu.” E foi um sorriso que nasceu em meu rosto. Percebi graças a ela, que lentamente me devolveu o gesto, me agarrando à nossa união, sem me desprender do fim, que parecia gostar de me lembrar estar sempre por perto, espreitando nos arbustos de nossas alegrias, se fortalecendo a cada lágrima que não soltávamos, a cada realização própria.
     Andamos até um pequeno hotel. Intocável pelos conflitos, me peguei imaginando bombas destruindo o lugar, a artilharia inimiga, a defesa caindo num esforço em vão para manter a cidade segura, as rajadas de fuzis leves, de metralhadoras de calibre .50 rasgando os jardins, rasgando as pinturas, rasgando o que nós demoramos tanto para construir com todo amor e esforço possível.
     Pensamos que não ficaríamos no quarto por muito tempo. Nossa intenção era sair e conhecer. Passear, assim no passado. Como um passarinho com uma asa quebrada em nossas mãos, assim carregávamos um ao outro.

 
***

     “As tensões aumentam nas fronteiras. As exigências são grandes, e o Estado resiste ao apelo do povo. Na noite passada reportamos os eventos ao vivo das consequências geradas pela ambição de nossos líderes. Homens e mulheres, o medo vem seguido de flashes no horizonte. Vivemos uma época onde o conflito nuclear a cada dia aumenta. E o Relógio não para, tendo sido adiantado novamente. Dois minutos para meia noite. Voltamos após o comercial.”

     Meus problemas sumiam à sua presença. Luísa não só me abraçava com seu corpo, mas também com suas palavras e olhares. Adormecer em seu colo era minha maior fantasia. Seus seios tocavam meu peito independente da temperatura, da umidade do ar, de sua vontade em se afastar da realidade. E ela era mais do que isso. Dona de uma presença impactante. Difícil de acreditar quando me falava que certas pessoas a odiavam. Como isso poderia ser possível? Como ela poderia conhecer tal palavra? Eu esquecia de que também já sofreu, de suas lutas, de que já derramou choros. Tão bela, tão forte, tão inesquecível.
     O silêncio não era desconfortável ou constrangedor. Fazia parte de nós, do que éramos. Só que ela era mais barulho do que eu poderia algum dia ser. Ela era tempestade, movia-se a raios e seus passos causavam trovões. E eu? Um barco à deriva, esquecido ou simplesmente abandonado. As pessoas vinham e andavam comigo, me levavam a lugares, a felicidades e dores, e depois eu ficava por lá mesmo no oceano, preso a qualquer coisa que o último passageiro deixara.
     “Amigo?”
     “Oi?”
     “Você por acaso teria cinquenta centavos para me dar? É pra ‘mim’ interar aqui,” ele me mostrou as moedas que juntas somavam cinquenta centavos. “E comprar um cigarro.”
     “Olha,” eu respondi tirando um box de Luckies do bolso de minha calça. “O dinheiro eu não tenho, mas toma aqui,” o homem pegou de minha mão, tirei o isqueiro da caixa e o entreguei. Tendo acendido ele se afastou e foi embora.
     “Você é bem generoso.”
     “Dá nada. Pra ele é mais importante,” encarávamos um ao outro, sentados com cada perna de um lado do banco. Seus cabelos, longos aos ombros, negros, balançavam com o sopro dos ventos. E eu segurava uma de suas mãos com ambas as minhas. “Luísa?” por um breve momento ela olhava para o horizonte.
     “Oi?”
     “Você é linda.” Seu rosto corou, igual da última vez que eu disse isso. Ela sorriu também, dando a impressão que começara a crer em minhas palavras. E nos beijamos. As crianças numa escola próxima de nós começaram a sair. Correrias e gritarias, enquanto eu e Luísa nos beijávamos. Num terreno elevado, ao nosso lado, ficava um parquinho. Balanços e gangorras. Pais paravam ali para suas crianças brincarem um pouco entre si, como uma espécie de recompensa, talvez. Algumas mães aproveitavam para fofocar. Minha surpresa foi não ter sido chamado atenção. Ela subira em meu colo, e suas mãos não pairavam mais ao redor de meu pescoço. A vontade era enorme, imensurável.
     “Nossa, meu deus,” ela disse se afastando e olhando para os arredores.
     “Pois é.”
     “Eu quero mais.”
     “Por que parou então?”
     “As pessoas podem estar olhando.”
     “Aproveita enquanto dá,” e ela mordeu o lábio inferior. “Se bem que de estar contigo isso vai ser sempre possível.”
     Ela se aproximou, colocou uma de suas mãos no banco, num vão que formávamos, e sorriu aquele sorriso de embriaguez amorosa, romântica, louca para explodir sua devassidão.
     “Ei, você!” fomos interrompidos por uma voz masculina. Eu abri meus olhos, um pouco nervoso, e ela me soltou. Procuramos a fonte daquela voz. “Você mesmo, jovem!”
     “Oi.”
     “Do you speak english?” mas que porra é essa? Eu me questionei e com um olhar assustado Luísa me retribuiu a mesma estupefação. “Do you speak english?” ele repetiu.
     “Yes,” eu arrastei um arrependimento em dá-lo atenção.
     “So so?” Não me ouviu, pensei. Fazendo um gesto característico com uma das mãos. Sorria, e se manter em pé era complicado.
     “A little bit.
     E então ele expandiu seu sorriso. “How are you?
     “I’m fine, thanks for asking.
     “How are you?” ele perguntou Luísa, virando-se à sua direção.
     “Same,” não parecia muito contente com aquela interrupção. Pode ser que o homem tenha entendido, ou pode ser que estava com sede. Me estendeu a mão. “Good bye!” e eu a apartei. Quando voltamos a encostar nossos lábios ele voltara. “Ame-o direito,” falou para Luísa. “Esse aí é bom. Seja boa com ele! Não machuque o coração dele. Ele é bom.” E com essa partiu.

 
***

     Quando entramos no quarto deixamos nossas malas no chão. Nós nos despimos e deitamos. Essa poderia facilmente ser a minha vida. Afundando na escuridão de minha alma, para ser salvo pela luz de seus olhos. Carregava minha vida assim, culpando-me também por erros que não eram meus. De algum jeito, em minha mente, a ausência de uma possível intervenção minha me abatia nessa dor. Nos dias amargos, ou sem gosto, eu podia ouvir meu nome nas explosões. As trincheiras não passavam calma, e aos poucos deixavam de existir. Os tiros cochichavam remorsos, os fragmentos das granadas me preocupavam nessa loucura. Meu corpo se esquentava. Não gosto disso. Não sou fã do verão. Ficar melado de suor por somente ir à esquina. Porém, eu não me incomodaria de maneira alguma em ficar dentro dos lençóis na companhia de Malu. Era como se seu amor refrescasse, que nosso suor fosse feito da Fonte da Juventude. O tempo parava por poucos instantes após o regozijo de nosso fruto tão bem cultivado. Com nossos corações ainda trêmulos, vulneráveis a qualquer sentimento, nos abraçamos para aguardar a vinda do sono.
     Sonhos que se tornam realidade, esses são raríssimos de acontecer. Nossa vida juntos até aquele momento fora um pesadelo, com curtos episódios de sorrisos descontraídos e viagens ao paraíso. Agora, exatamente agora, ali naquela cama, naquele estado, um recomeço deixava de ser impossível. Entraríamos neste mundo, neste novo mundo, pós-guerra, com novas charadas e sem ininterruptas matanças e conspirações que nos assolavam e nos projetavam esse medo diário pela hora seguinte.
     “Eu posso pedir por mais?”
     “Claro,” ela me respondeu virando-se.
     “Por onde eu deveria começar?”
     “O que você acha?” eu a beijei, acreditando que essa era a melhor forma de respondê-la. O mundo lá fora, distante de nós, explodia, gritava e soluçava choros. E nós dançávamos. Seus seios túrgidos por debaixo dos lençóis me esquentavam, ao poucos entrando em contato diretamente com minha pele, efervescendo ainda mais meus sonhos, meu querer para uma vida tranquila de quietude mental e carnavais noturnos.
     Ela interrompeu-me. “O que houve?” perguntei.
     “Nada,” respondeu umedecendo os lábios para um sorriso. “Eu só queria parar mesmo, para te ver, prestar atenção em seu rosto.”
     “Ora, você também é romântica?”
     “Sou muitas coisas, meu bem. Com o tempo você verá todas.”
     “Assim eu espero.”
     “Só me prometa uma coisa.”
     “Qualquer coisa.”
     “Nunca deixe de me amar.”
     “Mas não seja tola. Claro que te amarei para sempre.”
     “Até mesmo depois de minha partida?”
     “Não diga isso. Nem pense sobre! Estamos aqui.”
     “Você acha que estaremos no futuro também?”
     “Sim.”
     “Mesmo?”
     “Mesmo.”
     “Até depois de você me descobrir?”
     “Eu já fiz isso, e aqui estou. Como sempre estarei.”
     “Oh, querido,” seus braços se envolveram por meu pescoço. Ela fundou seu rosto em meu pescoço, deixando-o molhado, mais do que já estava. Depois de afastar seu corpo, com os olhos vermelhos, eu a beijei mais uma vez. Uma última, se eu soubesse, e caímos para um sono. Meu passado já não existia. Todos os dias antes desse ficaram em algum lugar bem longe. Em um álbum estrelado, talvez. Composto não por fotografias, mas palavras e músicas também, que guardavam feridas jogadas ao mar. E alegrias, de uma jornada simples, com caminhos pavimentados por pedras e sangue. Assim como de todo bom homem e boa mulher que se joga aos próprios desafios, e à insatisfação do mundo por um pouco de paz.

 
***

     Os beijos de Luísa me levavam à lembranças cuja existência eu não mais acreditava. Que eu jurava tê-las afogado. Neste meu último dia em sua cidade de canções tão contraditórias às esquinas, ruas e paredes pintadas pelo glamour de quem visitava o passado frequentemente. Conhecemos estas figuras, estes personagens caídos em caos, e às vezes esquecemos que a angústia existe para todos. O egoísmo, a antiga crença que o homem é o centro do universo. Sendo neste caso, o universo é representado pelo interior de cada ser vivo. Como o leão que crê que a zebra existe só por causa dele, para alimentá-lo, salvá-lo da morte por fome. Deixávamos a empatia de lado. Não ouvimos as palavras do próximo, ao invés disso esperamos ele calar a boca para finalmente nossa vez de falar. O xadrez foi largado de mão. Vivemos um eterno jogo de pôquer. Cuidado com as caretas, com as expressões faciais. Fotografem-nas, se possível faça um desenho ou uma pintura de cada ruga, de cada músculo relaxado ou retorcido, retraído, de cada dor ou cansaço. Por favor, não se esqueça das lágrimas, e daquele brilho nos cantos de um sorriso.
     Sua cabeça repousava em meu colo. Minhas pernas, fechadas, eu me perguntava se não se sentia incomodada.
     “Eu tô gostando,” ela disse.
     “Do que?”
     “Disso.” Luísa sabia no que eu estava pensando. Seu sorriso poderia salvá-la, mas não sei se eu era seu motivo. Quando eu a via, distante, aquela manifestação não estava lá. Não a acompanhara nem no mesmo ônibus. A consciência que nada era para sempre, isso sim segurava sua mão em cada rua que atravessava. Tocava uma música relaxante enquanto descansávamos. O cigarro em minha boca me levava à questão sobre o que ela se concentrava a ver. Ocasionalmente ela tirava a morte de minha boca para me beijar, me levando a explorar as curvas de seu corpo feito um cego lendo pela primeira vez algo em braile. Na guerra eu prestava bem atenção naqueles responsáveis por desarmar minas e outras bombas. A mão deveria ser leve, deveria transmitir calma e confiança, e segurança, pois a responsabilidade era grandiosa. Ela me segurava, passeando comigo em seu jardim, em seus declives, em seus bicos intumescidos, agradecendo a mãe natureza a cada gota que se escorria. Rios nunca foram tão belos. As estrelas exageravam seus brilhos, mas ela, ali, era mais importante do que a lua esta noite. Minha menina estelar, eu pensei. Eu quis dizer, e a dor de não poder só era suportável devido ao que mostrávamos por nossas ações. Algo sem gravidade. Correr pelo espaço deve ser assim. Tendo cada beijo como uma estrela nascendo, e morrendo, até o início e o fim de nosso tempo. A frase tem seu peso. Sentíamos ela, mas a segurávamos em nossa garganta, e trocávamos em nossas línguas.
     “Eu queria você aqui. Pra sempre. Eu queria que você ficasse aqui.”
     “Eu também.”
     “A gente tem tantos lugares pra ir. Tantas músicas para ouvirmos juntos, para dançarmos. Eu adoro jazz, você sabia?”
     “Que bom, pois eu também gosto.”
     “Poderíamos ouvir todas as noites.”
     “Eu prefiro mesmo é te ouvir ofegante em cima de mim.”
     O sorriso tímido que em tão pouco tempo me apaixonei surgiu. “Não fale assim.”
     “E por que não?”
     “Porque eu fico com mais vontade de você. E fico triste, porque amanhã eu não o terei mais.”
     “Claro que você me terá,” respondi. “Você já me tem. Em todos os lugares que fomos, depositamos um pouco de nós. Em todas as vezes que nos beijamos, depositamos um pouco de nós um no outro. Em cada olhar, risada, vontade de chorar, como agora compartilhamos, quer dizer que temos um ao outro. E esse pedaço será levado a todo lugar, a partir de amanhã. Distância não é problema, minha querida. Mas a maneira de como a enxergamos.”
     “Meu querido. . .” ela encostou uma de minhas bochechas com uma mão. “Suas palavras me fazem um bem inimaginável. . . Como eu gostaria que você soubesse o bem delas. . . Como eu gostaria de saber em te dizer. . .”
     “Então me mostre.”

     Na manhã seguinte acordei sozinho.
     Os dias voltaram ao que eram. Do outro lado da cama nada além do sol descansando. Levantei-me e fui à janela. A calma não se ausentara. Eram dez da manhã, como o relógio na cômoda indicava.
     “Minha querida. Ninguém neste mundo é perfeito. E ninguém nunca será. Tudo o que podemos fazer é sermos bom em algo. Seja em matemática, história ou literatura. Seja em beber, transar ou observar as estrelas. E você, por todo esse tempo, sendo apenas você mesma, aos risos e tropeços, apenas isso, tem feito com que eu me sinta bem amado.” Eu deitei, refletindo em minhas palavras finais. Tendo de volta os dias vazios preenchidos por solidão, por medo e por um quieto desespero, eu fechei meus olhos.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 26/07/2017
Reeditado em 26/07/2017
Código do texto: T6065721
Classificação de conteúdo: seguro
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