Uma rosa morta

Estávamos sentadas no chão de tábuas corridas, esvaziando as gavetas da cômoda no quarto de minha avó, no fim de semana seguinte ao enterro. O que seria feito do quarto era ainda incerto, embora minha mãe houvesse comentado algo sobre fazer uma reforma e mandar pintar. Minha avó vivera ali por 30 anos, e minha mãe parecia disposta a apagar a sua presença física o mais rápido possível.

Não julguem mal minha mãe. Ela amava muito minha avó, que sempre fora um espírito prático e considerava um desserviço fazer culto de personalidade - principalmente de membros da família. Livrar-se dos pertences de uso diário era um modo de cumprir com sua visão de mundo. E, portanto, lá estávamos nós, limpando gavetas, separando o que seria jogado fora do que seria preservado.

No fundo da última gaveta de roupas, encontrei uma agenda de capa de couro marrom, folhas amareladas. Abri-a, curiosa. Entre as páginas, marcadas com anotações de compromissos na letra elegante de minha avó, havia bilhetes de trem, entradas de teatro, ocasionalmente um cartão de visitas, e, quase no final, uma rosa seca, prensada. Na página à esquerda, ela escrevera "Júlia - 18:30". Mostrei para minha mãe. Ela franziu a testa.

- Júlia. Claro. Foi um sábado, então...

- O que houve nesse sábado, mãe? E quem é Júlia?

Ela pegou a agenda, abriu-a na página de rosto, onde estava impresso o ano: 1954. Depois, colocou-a no chão e começou a falar, devagar, como quem recorda os detalhes de uma história parcialmente esquecida.

- Seu avô estava lutando no Pacífico, em 1943. Acabou sendo feito prisioneiro pelos japoneses... ficamos mais de dois anos sem notícias dele, praticamente até o fim da guerra. Enquanto isso, a sua avó trabalhava como guarda-livros de uma fábrica que produzia munições. Foi lá que ela conheceu a Júlia.

Minha mãe parou de falar e eu não fiz a pergunta, da qual já sabia a resposta. Mas ela preencheu os detalhes que faltavam no quadro.

- A América... e Buffalo, em particular, creio, tornou-se um lugar estranho para se viver durante a guerra. Diferente... creio que seria uma palavra melhor. Os postos de trabalho que tradicionalmente eram exclusividade de homens, foram ocupados por mulheres. Havia mulheres por toda a parte... dirigindo ônibus... operárias... policiais... secretárias, administradoras... e guarda-livros, como sua avó. Algumas delas eram gays, e deve ter sido ótimo poder usar calças compridas em público. Isso virou uma coisa normal.

- Mas vovó... - comecei a falar.

Minha mãe prosseguiu, me interrompendo.

- Sua avó, como outras mulheres hetero, estava sozinha durante a guerra. Conheceu a Júlia na fábrica, ela era contramestre ou algo assim. As duas começaram saindo para um drinque, depois do expediente... depois a coisa ficou mais séria.

- Você lembra da Júlia?

- Claro que me lembro! Eu tinha oito anos de idade, sua tia Joannie estava com seis. Júlia era uma mulher incrível... fumava... e dirigia um Studebaker Champion.

- Ela... frequentava a nossa casa?

Minha mãe me olhou como se eu tivesse acabado de cair de Marte.

- O que você acha? Claro que ela frequentava a nossa casa! A primeira vez em que estivemos nas Cataratas do Niágara, foi a Júlia quem nos levou. Éramos quase como uma família...

Eu já imaginara como a história acabava.

- Então, a guerra acabou e vovô voltou.

Mamãe balançou a cabeça, em concordância.

- Não dava pra continuar, seria um escândalo. O mais provável é que ela perdesse a guarda das filhas.

- E... nunca mais se viram?

Mamãe olhou para cima.

- A Júlia mudou-se para Nova Iorque quando percebeu que não poderia comprar a briga. Ela e sua avó ficaram muitos anos sem se ver... creio que até pelo menos 1953.

- E o que aconteceu, em 1953?

- Eu era adolescente... lembro bem. O casamento de mamãe estava passando por uma crise, começou a pensar seriamente em se divorciar. Foi aí que, de algum modo, voltou a ter contato com a Júlia. Ela disfarçava, mas eu sabia que as duas estavam se falando. Um belo dia, em 1954, Júlia apareceu por aqui... dirigindo um Studebaker Champion.

- Aquele do tempo da guerra? - Espantei-me.

- Não - riu-se ela. - Era um modelo mais novo, mas era um Champion. Júlia parece que gostava realmente da marca.

- O reencontro não surtiu efeito, pelo visto - ponderei.

- Seu avô havia começado a apresentar os primeiros sinais de câncer. Foram aqueles testes nucleares em Nevada, como soubemos depois... sua avó decidiu que seu dever era ficar e cuidar dele. Foi triste. Júlia insistiu, marcou uma data para que minha mãe pegasse o trem para Nova Iorque... tudo em vão.

Abriu a página onde estava a rosa seca.

- Acho que Júlia deu essa rosa para ela... o dia da viagem, que nunca houve.

Fechou a agenda e ficamos em silêncio por alguns instantes.

- Você tem uma foto da Júlia? - Perguntei, por fim.

Ela começou a revirar uma caixa de sapatos cheia de fotos. Acabou encontrando uma em preto e branco, de uma família em frente à um Studebaker Champion, junto às Cataratas do Niágara. Tinha todo aspecto de ser uma foto profissional, tirada por algum fotógrafo local. Minha avó estava de vestido de verão, minhas tias, ainda meninas, louras e sorridentes de pé, junto dela, uma de cada lado. E, com um braço passado sobre os ombros de minha avó, um sorriso imensamente branco no rosto negro, estava Júlia.

Usando calças compridas, naturalmente.

- [25-07-2017]