Médico de Almas
O coração em frangalhos por mais uma paixão fracassada, e ela já não via mais graça em viver. Arrastava-se de casa para o trabalho, do trabalho para casa, vegetando em ambos os lugares.
Diante da baixa produtividade, o chefe a chamou para conversar e, sem surpresa, a viu em lágrimas sentidas, desabafando toda a dor que lhe ia ao coração. Ele a ouviu com paciência e, ao final, lhe entregou um cartão, com um nome e um número de telefone. Abaixo, em letras miúdas, lia-se “médico de almas”.
- Ligue para ele. – ordenou.
Sem muitas esperanças ou entusiasmo, fez a ligação. Ao contrário de um discurso pausado e calmo, como era de se esperar de alguém que se dispõe a consertar feridas espirituais, a voz do outro lado era agitada, parecia fazer mil coisas ao mesmo tempo, enquanto falava com ela. Desconfortável com a situação, pensou em desligar, mas, temendo perder o emprego, conseguiu o endereço e um horário marcado, ainda para aquela manhã. Avisou ao chefe e saiu.
Ao chegar ao local, deparou-se com um abrigo para animais abandonados, cuidados por um senhor, já idoso, de caminhar dolorido e trôpego. Ele a conduziu para dentro, entre cães eufóricos pela novidade, que se alternavam em saltar-lhe nas pernas, ávidos por um carinho. Ela resistiu a esse assédio, mantendo as mãos fora do alcance daqueles focinhos carentes. Seguia ansiosa para encontrar logo o tal médico e livrar-se dessa chateação. Pelo menos, o chefe saberia que ela havia tentado.
O homem lhe entregou um balde com uma pá e lhe pediu para recolher as fezes dos animais. Ela ia retrucar, indignada, mas a figura franzina à sua frente parecia mesmo muito necessitada dessa ajuda. Não conseguia vê-lo executando esse serviço e, por caridade, atendeu ao pedido, cercada de peludos curiosos. Quando terminou, ele lhe agradeceu muito e, em seguida, perguntou-lhe se poderia dar banho em alguns dos cães. Ele explicou-lhe que quem fazia isso para ele eram os voluntários, mas eles já não vinham mais com tanta frequência.
Mais uma vez, por piedade, ela cedeu. Ficou surpresa em perceber que os animais se deixavam levar docemente para o tanque e, durante o banho, tentavam lamber-lhe as mãos, a face. Ela continuava arredia a esse contato, quando um deles, coberto de água e espuma, sacodiu-se vigorosamente ao seu lado. A primeira reação foi de susto e zanga. A roupa de trabalho num escritório estaria imprestável depois dessa experiência maluca. Pensou, novamente, em ir embora. Mas viu sua sombra no chão e pode fazer uma ideia de sua figura agora, descabelada, molhada e coberta de espuma de xampu veterinário. E riu. Pela primeira vez, em semanas, riu. Riu de si e do cachorro desastrado, que, alheio à trapalhada que fez, continuava feliz, abanando o rabo, a grande língua de fora dando a impressão de um enorme sorriso para ela.
Aproveitando o momento, o bicho levantou-se nas patas traseiras, caminhou até bem perto e encostou-se nela, de lado, quase pedindo desculpas, quase pedido um abraço.
- Seu malandrinho! – murmurou, abraçando-o e acariciando sua cabeçorra.
A partir daí, muitos abraços, carinhos e sorrisos depois, ela ajudou o dono do abrigo a alimentá-los, medicar alguns, passar antipulgas em outros, consertar coleiras, caminhas, cercas, telhas, lavar vasilhas. O homem a acompanhava em todas as atividades, ajudando e conversando. Falou dos filhos, todos tão ausentes, tão distantes, falou da viuvez, do câncer que quase o havia levado, das dores constantes. Via-se que a vida dele era sofrida, mas ele havia encontrado um sentido para ela. E entendeu a razão do cartão que o chefe lhe havia entregue. O homem era mesmo um médico de almas. Sentia-se bem melhor.
Como a adivinhar, ele perguntou se ela gostaria de conhecer aquele a quem estava procurando agora. Ante a surpresa dela, ele a levou ao interior da casa e, lá, a apresentou a uma cadela pequenina, muito preta, cercada de cãezinhos bebês. Todos lindos, alegres e famintos, menos um, que parecia não ter o movimento das patas traseiras.
- Eu a encontrei na estrada, já em trabalho de parto. Trouxe todos para cá em seguida. Já consegui lares para quase todos. Menos para a mãezinha e o aleijadinho.
Ela imediatamente entendeu o que ele lhe propunha. Não poderia adotar cães. Nem mesmo gostava deles. Mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, a cadela levantou-se, abocanhou a pata do aleijadinho e o levou até ela. Parecia pedir-lhe uma chance para ele. E seu coração ferido encheu-se novamente de amor.
- Pode levá-los no final de semana, se quiser. Pense direitinho. É muita responsabilidade.
Passou a semana ansiosa. Trabalhou com afinco, agradeceu ao chefe pela indicação do tal médico de almas e no final de semana foi buscá-los, feliz. Passou o dia ajudando no abrigo e, no final da tarde, levou seus novos amiguinhos para casa. Eles foram os primeiros médicos de alma de sua vida, mas não os únicos, embora desde aquela dia ela nunca mais houvesse realmente precisado de um médico de alma novamente.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Médico de Almas
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