CLÁUDIO E MARIA

Localizado algures nos anos 60…

Cláudio olhou de novo para o rio que se estendia à sua frente… Sentado num banco de pedra, fazia uma retrospectiva dos últimos acontecimentos que ensombraram sua vida.

Como desejava que o tempo tivesse parado duas semanas antes… Se assim fosse, continuaria feliz ao lado de Maria. Revolucionária como ele, depressa se identificaram após uma conversa mais profunda à mesa de um modesto café.

Depois, tudo evoluiu rapidamente. Ela morava numas águas furtadas, de tetos baixos e onde ele se instalara a seu convite. Partilharam uma simples cama de solteiro mas o fogo que deles despoletou até a tornava maior do que realmente era.

Ambos magros pois alimentavam-se mal, o dinheiro não dava para mais, sentiam-se explorados pelas políticas demagogas da ditadura e de favorecimento do capital em desfavor dos trabalhadores.

Iam às clandestinas reuniões partidárias, ouviam entusiasmados os discursos inflamados do educador da classe operária, o Gastão, esquálido, de barba rala e cabelo sempre eriçado, fascinava-os pelo poder persuasor do mestre. Até que foi convocada uma manifestação em frente ao ministério da justiça, exigindo a demissão do primeiro-ministro. Juntando-se a muitos outros camaradas, marcharam engrossando aos poucos a turba que descia a principal avenida da cidade de Lisboa, denominada da Liberdade.

A polícia seguia-os de forma evidente, as carrinhas cheias de polícia de choque ladeavam a mole humana, até que estacaram perante um cordão de agentes da autoridade carrancudos e dando sinais de nervosismo. Dali não podiam passar…

Alguns dos elementos que conduziam a manifestação incitavam ao confronto e vários jovens de rosto tapado com lenços começaram a arrancar pedras da calçada e a lança-las contra os polícias. A resposta veio sob a forma de carga cega sobre os manifestantes, batendo indiscriminada em homens e mulheres. Vários caíram sob a violência que sobre eles se abateu e mesmo assim continuaram a ser agredidos.

Lá atrás, constatando o que sucedia na frente da manifestação, surgiram de repente cocktails Molotov nas mãos de alguns contestatários, os quais, incendiados, foram arremessados contra montras e automóveis estacionados, depressa pegando fogo e fazendo com que aquela zona ficasse iluminada por chamas e envolva em denso fumo.

De repente estabeleceu-se uma batalha campal, quase corpo a corpo, com agressões mútuas. Mas a força prevalece, potenciada por balas disparadas sem alvo definido e que fizeram tombar alguns manifestantes.

Tudo sossegou passados alguns minutos. Os bombeiros apagaram os focos de incêndio, prestaram os primeiros socorros aos feridos. Infelizmente onze deles estavam em estado tão grave que foram logo conduzidos ao hospital.

Cláudio, que perdera de vista Maria no meio de toda a confusão, fugira correndo, só parando depois de se sentir suficientemente afastado da zona da conflito.

No dia seguinte contactou com alguns colegas manifestantes para saber dela e as notícias foram quase nulas.

Deixou passar mais dois dias pois a polícia poderia estar à espera dele no hospital, armando-lhe uma armadilha para o prender.

Não contendo mais a impaciência, acabou por ir a dois hospitais próximos e após gastar três notas de cem escudos em subornos a maqueiros, soube que os feridos da manifestação haviam ali ficado internados e dois deles morreram. Um era uma mulher.

Cláudio sentiu um aperto no coração. Maria não tinha família próxima, pelo menos que conhecesse, por isso seria mais difícil saber algo sobre ela.

Nessa tarde deram-lhe a notícia… Ela havia sucumbido devido às balas, nem todas de borracha, possivelmente disparadas de curta distância. De imediato se dirigiu à secretaria do hospital e apresentou-se como sendo o noivo da defunta. Queria assumir as despesas do funeral da amada. Com que dinheiro? Pediria emprestado, roubaria se necessário mas ela não ficaria como indigente, à mercê da caridade…

Não lhe levantaram problemas, o corpo estava na morgue, conservado no frio e oportunisticamente uma agência funerária depressa tratou de tudo. O dinheiro arranjou-o junto de amigos, revolucionários como ele.

O funeral decorreu no dia seguinte, acompanhado pelos poucos amigos que arriscaram comparecer. A alguma distância, dois indivíduos vestidos de negro e óculos também escuros vigiavam a cerimónia.

Cláudio esteve sempre em sobressalto pois temia que os prendessem a todos. Felizmente nunca o importunaram. Após ter ficado ali algum tempo, como se conversasse intimamente com Maria, retirou-se e passou o resto do dia e da noite a deambular pelas ruas da cidade.

Agora passava ali o tempo, junto ao rio.

Fora despedido pois deixara de comparecer no local de trabalho e o dinheiro, pouco, continuava a surgir fruto da benevolência de alguns amigos solidários.

Maldisse a sua vida. Tirou a carteira do bolso interior do casaco já muito surrado e extraiu a foto de Maria. Beijou-a. Fora a sua amada, a sua deusa, a sua eleita. Agora repousava com sete palmos de terra em cima. Já não tinha mais lágrimas para verter. Deixara de comer, de dormir.

Anoitecera…

Na manhã seguinte, um corpo de homem, ainda jovem, vestido de forma muito humilde, foi encontrado por pescadores, a boiar junto à doca de Belém… Num dos bolsos, uma carta ilegível pelo facto de a água ter diluído a tinta. Sem dúvida que fora um suicídio, deduzira a polícia.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 13/07/2017
Reeditado em 15/07/2017
Código do texto: T6053267
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.