Assim ou... nem tanto.100
Amores Estranhos
Estava no meio de nada. Ele era uma espécie de ilha de escarpas tão altas que ninguém podia lá desembarcar. A timidez travou-o toda a vida e o seu coração estava vazio quando escreveu, para si mesmo, a primeira carta. Letra limpa, clara, desenhada e um insuspeitável recado de ternura. Quando o carteiro chegou estendeu-lhe o envelope depois de ler e confirmar o nome. Quem – pensou – escreveria a uma tal criatura? Outras cartas chegaram nos tempos seguintes. A mesma caligrafia, carimbo da mesma localidade, data diferente. O remetente, de nome indecifrável, morava numa rua do outro lado da cidade e tudo indicava ser um homem. Depois que o carteiro divulgou a história das cartas que tinha de entregar no mais remoto lugar da terra e sobre elas teceu as considerações que entendeu, o eremita começou a ser olhado como protagonista de amores estranhos, já que a letra era de homem e a regularidade das missivas muito grande. Acresce que, curioso devido a tanto mistério, decidiu atrasar uma entrega para ver de perto o conteúdo. Era, decididamente, uma carta de amor. “Separo-me de forma mais nítida para conseguir ter mais íntima a nossa ligação” leu, atónito, o carteiro que se enrolou a seguir em considerandos de sentido oculto. “ Terás de vir antes, chegar sem falas, pegar-me na mão e levar-me contigo. Terá de ser o teu coração a reconhecer-me porque eu próprio não me sei. Já não me olho”. Quando, depois de arder como novidade maior o amor das cartas, a moça que trabalhava nos Correios chegou para o amar. – Sabes, disse-lhe. Eu também me escrevo.