Realidade ou Fantasia

Volto da escola com pressa, pedalando o mais rápido que posso, forçando meus músculos ao máximo. A ansiedade é imensa, eu tenho que chegar em casa logo, preciso tentar de novo.

Passo pelo portão enferrujado e entro a toda velocidade. Troco de roupa e almoço. Minha mãe acha estranho, “por que tanta pressa? ”, pergunta, não respondo, corro direto para minha cama e deito até pegar no sono. “É agora”, penso, “vou vê-la novamente”. No meio disso tudo há uma pequena voz dentro da minha cabeça dizendo que pode não funcionar, acho que é a voz da razão.

Demora cerca de trinta minutos até eu realmente pegar no sono, toda a animação me atrapalha. Finalmente durmo e lá está ela.

Dessa vez estamos na cozinha da minha casa, eu do lado de fora da porta e ela mais para dentro. Não sei o porquê, mas eu estou nervoso, não quero entrar para terminar de almoçar com a minha família. Ela, como sempre, está me acalmando e dizendo que eu devo voltar, acima de tudo, essas pessoas são sangue do meu sangue.

- Não vou voltar – falo. - Eles não merecem minha atenção nem meu tempo.

- Eles te amam, Jonas – ela retruca com aquela voz de anjo, porém autoritária. Como essa criatura consegue falar de duas formas diferentes ao mesmo tempo? – Pare de ser criança e vai lá. Ficar brigado com eles só vai fazer mal a todo mundo.

- Eu sou a criança? Você ouviu o que disseram daquela garota que apareceu no jornal? Que tipo de pensamento retrógrado é esse?

- Concordo com você, mas não deixe isso afetar sua relação com sua família. Ninguém pensa da mesma forma, até mesmo nós dois divergimos às vezes. Aprenda a conviver com diferenças e vamos lá, eu to do seu lado se precisar de mim.

- O que seria de mim sem você?

- Provavelmente um caso perdido.

- Como consegue fazer isso?

- O quê?

- Ser tão boa.

- Dou o meu melhor. É meio fácil já que estamos na sua cabeça.

- Então quer dizer que você sabe.

- Claro que sei. Eu sou você, se lembra?

- Por que não é real?

- Quem disse que não? Está tudo acontecendo, só que na sua mente. Não é real o bastante para você?

- Te quero aqui do meu lado. Quero poder te abraçar e beijar de verdade. Me diz que há uma pequena chance de você existir.

- Gostaria de dizer, contudo se nem você sabe como eu posso saber? – fico triste e isso não passou despercebido. – Ei, não fique assim, ainda podemos nos encontrar aqui. Não é o bastante?

- Com você nem todo tempo do mundo é o bastante.

- Pegou essa frase do Facebook? – pergunta ela sorrindo e se aproximando.

- Não acha que sou capaz de criar minha própria frase romântica? – respondo fazendo o mesmo.

- Ah sim, desculpa aí Nicholas Sparks.

- Muito engraçada – depois de falar fico um tempo olhando em seus olhos verdes.

- O quê? – indaga confusa.

- Eu ia falar alguma coisa, mas você é tão linda que esqueci.

- Ok, retiro o que eu disse, te chamar de Nicholas Sparks foi um insulto a ele.

Eu rio. Posso ser o mais meloso e não original do mundo, mas o clichê não é chamado assim por nada.

- Vamos, temos um almoço para terminar.

- Que tal se ficarmos aqui mais um pouco?

- Tudo isso é medo de voltar?

- Pelo contrário, é medo de não voltar, não voltar a te ver.

- Eu to sempre aqui. Tudo o que precisa fazer é vir me ver.

- Vai funcionar sempre?

- Só até quando você parar de precisar.

- O quer dizer? Precisar de que?

- Um dia isso ficará claro.

Com isso a cena vai se desfazendo, um pouco de cada vez. É hora de ir, sem a certeza de que conseguirei voltar.

Acordo sem ar e assustado. Olho ao redor como se tudo fosse novo. Já é noite e meu quarto está escuro. Fico um tempo olhando para parede, ou o vulto que eu julgo ser a parede.

Duas noites atrás tive meu primeiro sonho. Eu a encontrei em um ponto de ônibus. Ela estava tão linda que fica difícil de descrever, os cabelos ruivos estavam presos em um coque feito às pressas, o que dava um aspecto de meio preso e meio solto, tinha um sorriso estampado no rosto por nenhum motivo aparente, seus olhos sorriam com a boca, tão verdes, tão divertidos, eu seria capaz de encarar aqueles olhos por horas até me perder no mundo que eles traziam consigo. Aproximei-me querendo conversar, mas não tinha muita habilidade nisso. Ela que puxou assunto me perguntando por que estava encarando-a daquele jeito. Fiquei muito envergonhado e olhei para o outro lado, nesse momento eu ouvi o som mais lindo da minha vida, literalmente escutei a alegria, era a risada dela. Depois disso começamos a falar de verdade.

Eu estava tão entretido na conversa que perdi meu ônibus, infelizmente ela estava prestando mais atenção nas coisas e se levantou para pegar a condução. Eu não podia deixá-la ir, não sem ao menos ter o número dela. Subi no ônibus como um louco, sem nem mesmo saber para onde estava indo.

Demorou bastante até eu tomar alguma atitude e pedir, para ser mais exato eu só consegui quando ela fez menção de descer. Já ouviu falar naqueles segundos de coragem louca que de vez em quando nós temos? Foi isso aí que rolou.

De manhã acordei triste, sabia que não sonharia com a tal menina de novo, mesmo assim pensei nela o dia todo. Encontrei a garota perfeita e ela não era real, uma piada de mau gosto do universo.

Na noite seguinte, para minha surpresa e alegria, sonhei com ela de novo, mas parecia que as coisas tinham acontecido na minha ausência. Nós estávamos saindo do cinema, era nosso aniversário de um mês. Mesmo sem ter presenciado tudo o que aconteceu eu sentia e lembrava tudo, todas as conversas, as risadas, cada momento em que eu ficava parado encarando-a e pensando na sorte que eu tinha de ter achado essa menina, sabia e lembrava perfeitamente de quando eu percebi que essa é a mulher da minha vida. Meio cedo para alguém pensar assim, mas confia em mim, era ela.

O sonho de hoje foi o terceiro que eu tive. Nosso namoro já era público e eu estava quase dependente dela, sabia que isso era ruim, depender de alguém nunca é bom, até porque pessoas decepcionam, mas como você já deve ter percebido, ela não era nada parecida com os outros.

- É isso – falo para mim mesmo enquanto ainda encaro a parede. – Estou apaixonado por um fruto da minha imaginação.

Pego o telefone e ligo para um amigo. Ele vai rir da minha cara, mas pode ter algum conselho valioso para dar.

- Fala, Jonas – atende uma voz rouca na outra linha.

- Oi, Gordo, to precisando levar um papo sério contigo.

- Sou todo ouvidos – conto toda a situação para ele, desde meu primeiro encontro com ela até o sonho de mais cedo. – Você ta de sacanagem com a minha cara? – é tudo o que ele fala depois de ouvir.

- Não é sacanagem, é sério, cara.

- Só você para se apaixonar por uma garota que existe apenas na sua cabeça.

- Vai ajudar ou ficar enchendo a paciência?

- Ta bom. Tu falou que nunca a viu antes, certo?

- Certo.

- Você pode até não a conhecer, mas eu ouvi dizer que geralmente as pessoas que vimos nos sonhos já passaram por nós pelo menos uma vez em nossa vida, a gente apenas não se lembra delas.

- Então ela é real?

- Provavelmente.

- Valeu, bicho – e desliguei. “Ela é real”. Essa é a única coisa que eu conseguia pensar. A garota perfeita é real. Volto a dormir esperançoso, há uma chance de eu conhecê-la de verdade.

No dia seguinte vou para a aula prestando atenção em cada pessoa que passa por mim. Nada. Na escola também não há ninguém pelo menos parecido com ela. Minha euforia vai diminuindo junto com as esperanças.

Como tive insônia na noite anterior acabei dormindo na aula. Sorte minha, ela está me esperando.

Estamos no sofá da minha sala, logo depois do almoço que eu sonhara ontem.

- Você tem sardas – falo.

- Nunca percebeu? – perguntou confusa.

- Acho que não. Você não tinha nenhuma sarda antes.

- Agora eu tenho. Não reclama comigo, isso é obra da sua cabeça.

- Está confirmando que você não existe?

- Já tivemos essa conversa, mas diga-me você.

- Tecnicamente eu sou você e vice-versa.

- Admite que eu sou fruto da sua imaginação?

- A única maneira que eu tenho para te ver é em sonho, então sim, você nada mais é do que uma fantasia criada pela minha cabeça solitária.

- Que triste.

- Não muito, eu ainda posso te ver, mesmo que não seja tão real assim.

- Acha que isso é saudável, viver em um mundo fantasioso e deixar a realidade para lá?

- Você falou que isso pode estar na minha cabeça, mas continua sendo real.

- Acho que não entendeu. Pode até ser real, todavia nada do que acontece aqui afeta seu corpo físico lá fora, ou seja, não dá pra viver só aqui.

- Se a fantasia me faz mais feliz que a realidade, então não vejo problemas.

- Só pode ser louco.

- Louco por você.

- Sabe que isso não pode durar, tem que viver sua vida, achar uma garota legal, casar, ter filhos, viajar.

- Nenhuma garota vai ser que nem você.

- Todas têm algo que eu não tenho.

- O quê?

- Elas existem.

Com isso o sonho se desfaz e estou de volta a minha aula de Biologia. Uma tristeza aperta meu peito, tenho duas escolhas, viver no mundo real, mas sem a garota perfeita, ou viver a fantasia, a tendo ao meu lado.

Vou para casa triste, pensando em que decisão tomar. Esse dilema pode parecer estranho, contudo para mim, que não tenho ninguém, não sou nem um pouco interessante e nem tenho o menor jeito para lidar com qualquer tipo de pessoa, ter alguém que me entenda, que gosta de mim tanto quanto eu dela, é maravilhoso, mesmo que não seja real. Por isso minha decisão estava tomada.

O tempo vai passando, uma semana, um mês, um mês e meio. Todos esses dias sonho com ela, não sempre, mas uma quantidade suficiente de vezes para me fazer feliz. Enquanto isso a vida fora dos sonhos está em decadência, minhas notas estão diminuindo, meus amigos se afastando, meu humor oscila mais e mais, entre outros problemas psicológicos e físicos.

- Tudo bem? – pergunta ela durante um sonho. Estamos em cima de uma árvore na praça do bairro, é fim de tarde e tem algumas crianças brincando nas gangorras ali perto.

- Tudo ótimo, ruiva – respondo tranquilamente.

- Não mente para mim, te conheço, sei quando não está bem.

- Não sei. As coisas estão um pouco confusas, tá tudo muito complicado.

- Lembra que eu falei sobre como não é saudável viver na fantasia?

- Mas eu não estou triste, esse tempo que eu passo com você é minha alegria.

- Nem sempre nós estamos juntos, e dormir desse jeito vai afetar seu organismo, se já não afetou.

- Não me importo, desde que eu esteja com você nada mais importa.

- Ok. Primeiro: Você é a pessoa mais clichê que eu já vi, e antes que você fale, o clichê não é chamado assim porque funciona. Segundo: você pode não se importar consigo mesmo, mas eu me importo. Por favor, fica bem por mim.

- Vou fazer o possível – olhando para baixo, na direção das crianças na gangorra, apontando para elas indago:

- São reais?

- Claro que são. Olhe bem para a face delas.

Por um instante foco no rosto de uma delas e vejo... eu vejo o rosto da minha mãe com um semblante preocupado.

- Mas o que? - Abro meus olhos devagar. Estou deitado em uma cama de hospital, o cheiro de doença impregnando minhas narinas, o som das máquinas em um ritmo lento é a única coisa em meus ouvidos.

- Mãe? – falo com a voz rouca.

- Ah, meu querido – diz ela quase às lagrimas. – Graças a Deus você acordou, achei que esse pesadelo nunca teria fim.

Depois de toda a choradeira inicial ela conta tudo o que acontecera. Um pouco mais de um mês atrás o ônibus em que eu estava capotou e entrei em um coma profundo, correndo risco de nunca mais acordar.

- Ela...onde está ela?

- Quem, meu querido? – pergunta minha mãe preocupada. Não sou capaz de responder, caio no choro sem condições de dizer nada, apenas choro, deixo as lágrimas caindo sem controle. Soluço, engasgo, volto a chorar. Nada foi real, nenhum sonho, nem mesmo o que eu julgava ser de verdade era. O barulho das máquinas ao fundo forma a música mais triste de todos os tempos, trilha sonora perfeita para o momento.

Na semana seguinte saio do hospital destruído por dentro. Não sou capaz de viver em um mundo onde nem mesmo em sonhos ela exista.

O mês passa e nada de eu voltar a sonhar com ela. Entro em depressão, paro de comer, saio de casa só para ir para a escola e nada mais, às vezes nem isso. Qual o sentido de viver em um mundo onde você está sozinho sem alguém que te ame e entenda, sem uma parte de você?

Um dia levanto decidido, não irei mais viver, estou pronto para dar um basta no meu sofrimento. Vou para a escola normalmente e depois da aula passo em uma venda para comprar minha morte.

Estou no ponto para pegar o ônibus de volta para casa, distraído com meu celular quando ouço:

- Por favor, sabe me informar as horas? – pergunta alguém com uma voz angelical atrás de mim.