De mais ninguém
Descia pela rua Quinze, logo às 8 manhã. Procurava uma casa que vira em sonho. Era dessas; dessas que acordam e continuam seguindo sonhos. Não achou a casa mas achou uma muito parecida. Ela era cinza com janelas verdes. Um coelho num jardim de girassóis, um portão com grades baixas, trancado com uma corrente de papel. Bastou que batesse palmas uma vez para que o dono abrisse a porta. Uma música nova saía de dentro da casa. Resolveu entrar.
Três horas depois, voltava pela rua Vinte e Quatro. Não percebeu que estava descalça até que tivesse cortado o pé. Onde esquecera os sapatos? Não se lembrava de tê-los tirado. Não importava mais; estava cortada e doía. Chegou em casa apressada para limpar a ferida. Colocou a mão na bolsa e de lá tirou uma chave que não era dela. Que dia mais estranho! Foi no quintal, colocou o pé ferido no tanque e deixou que a água gelada lavasse o sangue seco. Cutucou o corte ao sentir que havia algo dentro da pele. Achou um caco, não de vidro. Curiosa, colocou chinelo nos pés, a chave de volta pro bolso e tentou voltar á rua Quinze. E não é que pintaram um novo nome para a rua? Mas ela sabia que era lá: mesma casa, mesmo jardim, mesmos cacos no chão da rua, que agora se chamava Vinte e Sete.
Ainda havia sangue seu nas pedras. Agora, porém, os cacos pareciam maiores. Recolheu-os e decidiu trazê-los para dentro da casa; não queria que ninguém mais corresse o risco de se machucar. A chave não serviu na porta; resolveu forçar a tranca, talvez só estivesse emperrada. O dono trabalhava em algo nos fundos e não notou quando a menina invadiu a casa. Colocou os cacos em cima da mesa, deixou a chave do lado de dentro da porta e saiu á procura dos seus sapatos. Encontrou-os do lado da cama. Virou-se e saiu apressada pelo jardim. Sentia-se desconfortável por estar sozinha lá. Enquanto caminhava através do jardim, ouviu novamente a música, e a ferida no pé doeu tão forte que não conseguia mais andar. Sentou-se entre os girassóis e decidiu apenas estar. O coelho se aproximou pedindo colo. Quando a música cessou, o dono da casa reapareceu.
- Olá, menina! Que bom que achou os sapatos! O que você está fazendo?
- Você diz agora ou na vida?
Se for agora, eu estou ferida.
E Se for na vida, poesia.
Enquanto andava descalça,
pisei num coração em pedaços.
E Assim que eu ficar de pé
te ofereço poesia, abraço e café.
Faz do meu lar tua casa,
dá a essa poetisa mais asa,
faz ela voar,
Faz ela voltar
ela que já não anda,
Ela que já não andava
Faz do seu olhar tua sala
Faz do seu andar teu ritmo
Faz dessa estação um destino.