Estamos Namorando
”talvez ainda não fosse o momento certo”. Pensou nisso pela décima oitava vez naquele dia.
Pensava com calma em cada palavra que iria dizer naquele dia. Planejou cuidadosamente.
Márcio sabia se prevenir antes de remediar.
Já Ulisses entendia bem o que significa deixar o vento correr. Sua preocupação era apenas a próxima hora. E nada mais.
Ulisses se orgulhava de contar com a sorte para resolver seus problemas. Mas admitiu para si mesmo que achava um tanto estranho o azar dar as caras justamente naquele dia.
Márcio andava de um lado para o outro tentando imaginar como poderia dizer tal coisa. Como seus pais reagiriam. O que falariam para ele.
Entrou no quarto e viu o relógio. Coincidentemente ele também havia parado naquele instante. Mas no caso dele era um problema de bateria. Márcio já sabia que isso aconteceria, afinal, já são dois anos sendo dono daquele relógio. Dois anos daquele fim de semana na praia. Dois anos do pedido de namoro. Podia lembrar de cada detalhe das pessoas em volta da fogueira, das músicas, das risadas e das histórias. Uma música em especial não podia esquecer. A que traduzia tão bem tudo aquilo.
“Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder...”
Ulisses também se orgulhava de seu dom de tocar e cantar. Modéstia à parte sabia que as reuniões de amigos ficavam mais legais com ele. E sabia que todos gostavam dele. Inclusive aquele a quem ele direcionou todas as suas músicas.
“Deixa assim ficar subentendido”
Novamente seu pensamento foi cortado por outra mensagem que acabara de chegar. Era do grupo da faculdade, avisando sobre uma pizza no sábado. Ele ia responder mais tarde. E inevitavelmente ele olhou a mensagem diferente da noite anterior. Diferente pelo momento em que ela foi enviada. “Tinha que ser justo hoje? ”
Márcio terminou de se arrumar e tomou um copo de água. Quatro copos de água. Nervosismo é algo normal naquela idade. Tudo é motivo de apreensão.
Resolveu ir para a cozinha. Sua mãe estava fazendo café e algumas torradas. Sentou na mesa. Olhou sua mãe por uns 3 minutos antes que ela percebesse sua presença. Sorriram um para o outro. Dona Laura sabia que ele estava nervoso somente pelas inúmeras vezes que mexia na orelha. Mãe é mãe.
Ulisses escolheu sua melhor camisa e passou. Por acaso foi um presente da dona da mensagem que recebeu. Ele admirava o bom gosto dela. Todos os presentes sempre foram de bom gosto. Se ele iria lhe encontrar, tinha que ir da melhor maneira possível.
Escondido, é verdade. O detalhe infeliz era o fato de sua mãe não gostar daquela mulher. Dona Ester cuidou de seus 5 filhos com muita dureza e pulso firme. Não era qualquer uma mulher que lhe agradava. O mais velho casou depois de 6 anos de namoro. E ainda sim dona Ester torce o nariz para sua nora. No caso de Ulisses, dona Ester sabia com quem ele estava se envolvendo, ou pelo menos desconfiava. E por isso faria de tudo para ver seu menino longe daquela mulher.
Ulisses gostava dela o tanto quanto gostava de dona Ester. E queria que as duas se gostassem também. Mas nem só de sorte era a vida de Ulisses.
Dona Laura perguntou como foi a aula para Márcio, e ele reclamou de um professor que passava mais trabalhos do que dava aula. Dona Laura contou que na sua época era pior.
Neste momento dona Laura olhou para o relógio e cortou as reclamações do filho, lhe pedindo que fosse comprar algumas coisas no mercado. Pela lista de coisas para comprar Márcio concluiu que naquele fim de tarde iria ter uma reunião das amigas da mãe. Amigas do bairro e da igreja, que se reuniam para conversar sobre os problemas da comunidade, jogar cartas, comer um lanche e por que não falar mal de alguém?
Márcio lamentou profundamente que aquela reunião fosse justamente naquele dia. Havia prometido que não passaria nem mais um dia para falar o que deveria falar. Mesmo contrariado foi fazer o que sua mãe pediu.
“Já vai sair?” A voz forte de dona Ester ecoou pelo corredor até chegar ao quarto de Ulisses. Talvez ela sentiu o cheiro do ferro de passar roupa. Ele confirmou na mesma intensidade que ela perguntou. Sabia que ela imaginava aonde ele iria. Porém nada podia fazer. Já tinha 18 e, portanto, tinha a falsa ideia de que era dono de si.
Pegou as chaves de casa, deu um beijo em dona Ester como se quisesse amansar a fera, mas recebeu de volta a pergunta se iria dormir hoje em casa. Ele riu dizendo que ia somente na casa de um amigo. Nada de mais. Mas dona Ester sabia com quem ele iria se encontrar.
Márcio procurava nas prateleiras do supermercado o que sua mãe havia lhe pedido, mas seu pensamento estava longe. Estava na conversa que tinha que ter com ela. Mas agora o nervosismo virou medo. Já pensava em desistir. Em deixar para outro dia.
“Pode até parecer fraqueza, pois que seja fraqueza então...”
Porém ele sabia que não poderia mais esperar. Havia prometido que o presente de aniversário de namoro era isso. Revelar à sua família sobre seu relacionamento. Então, pegou as últimas coisas, pagou e retornou para casa.
Ulisses também pensava em desistir em ir na casa daquela mulher, mas sentia que precisava estar lá. Afinal, aquela pessoa significava tanto para ele que não poderia recusar o convite dela. 4 anos, mais ou menos, e desde o primeiro dia ela lhe tratava como sempre desejou. Achou nela aquilo que nunca tinha sentido em mulher nenhuma. Amor, respeito, carinho e atenção. O que ela pedisse, ele faria.
Ulisses chegou e tocou a campainha. Foi recebido com aquele sorriso conhecido. Abraçou-a e entrou. Estava um tanto curioso para saber porque foi chamado para ir na casa dela naquela hora. Geralmente se encontravam mais a noite. Olhou o relógio. 17:07. Estava com fome, e percebeu na mesa um lanche sendo preparado. Antes de se sentar, pediu para ir lavar as mãos, e como conhecia o caminho do banheiro, nem precisou de resposta.
Márcio olhou para o relógio e lembrou que estava quebrado, mas pela posição do sol já era hora de chegar em casa. Apressou o passo e abriu a porta rapidamente, procurou dona Laura, entregou as sacolas e foi para o quarto. Dona Laura pediu que viesse falar com ela logo, pois ainda tinha outra coisa para ele fazer. Márcio quase xingou em voz baixa, mas falou que já retornaria à cozinha.
Ulisses passou água no rosto, ainda curioso pelo convite. Julgou que isso era besteira. Enxugou as mãos e foi para a cozinha. A mulher terminava de preparar seu lanche. Ela sabia do que ele gostava. E fazia perfeitamente.
Quando deu a primeira mordida, a mulher se sentou na frente dele e com o mesmo sorriso lhe jogou sem piscar.
“Estou muito feliz que tenha aceitado meu convite. Não via a hora desse dia chegar. Finalmente posso abrir o jogo com você”
Ulisses engoliu seco e ouviu com calma tudo o que aquela mulher tinha para lhe falar.
Irritado, Márcio tirou a camisa, se olhou no espelho e retornou para sua nova missão com a dona Laura. Quando caminhou para a cozinha se deparou com uma cena que não estava preparado.
Risadas, torradas, dona Laura e Ulisses concentrados em uma conversa.
Todos se olharam. O silêncio de Márcio e a paralisia de Ulisses contrastavam com as risadas de dona Laura.
“Se eu não percebesse tudo o que acontece, eu nem poderia ser chamada de mãe. Há quatro anos, quando Ulisses se mudou aqui para a rua percebi que vocês dois tinham algo mais forte do que uma simples amizade. E se nenhum dos dois tomou coragem para abrir o jogo, alguém tinha que fazer isso. E foi por isso chamei Ulisses aqui. O considero um filho, e quando soube sobre vocês, fiquei muito contente”
Márcio teve vontade de se enterrar.
Ulisses queria abraçar aquela mulher.
Mas os dois se olharam e sorriram.
Dona Laura também sorriu e serviu mais algumas torradas para Ulisses. O silêncio era ensurdecedor, mas foi novamente quebrado por dona Laura.
“Será que alguém tem alguma coisa para me falar? ”
Márcio: “... eu... eu... hã... sei lá, acho que só posso dizer que te amo, mãe”
Ulisses: “dona Laura, eu queria que a senhora fosse minha mãe”
Dona Laura, se levantou para ir ao quarto, mas antes olhou para os dois e perguntou: “mais alguma coisa? ”
Os dois se olharam, deram as mãos e, como se tivesse ensaiado, falaram aos mesmo tempo:
“Estamos namorando! ”