OPORTUNIDADE PERDIDA
Jamais perca a oportunidade de ser feliz com medo de perder a de ficar quieto
Wellington Kaue de Matos
O ano letivo decorria normalmente, com os problemas comuns a todas as escolas: alunos indisciplinados e preguiçosos, falta de recursos, instalações degradadas por falta de manutenção e de investimento… Mesmo assim, os professores e restantes funcionários lá iam "levando a água ao moinho", com sacrifício e custos pessoais.
Marieta era professora do quadro há bastantes anos e pelas suas mãos já haviam passado alguns milhares de alunos. Ensinava Inglês e Alemão, tendo fama de professora competente e rigorosa, muito exigente. Talvez por isso bastantes alunos não gostavam dela, não facilitava.
Entre todos os colegas tinha alguns das suas preferências, nomeadamente um de Matemática, mais jovem que ela, algo sorumbático e taciturno. Chamava-se Jorge e após insistência nos intervalos de pequeno-almoço conseguiu saber algo sobre ele. Vivia com a mãe, que padecia de Alzheimer em estado adiantado e devido às despesas inerentes – sem alternativas, pois não havia mais família, tinha contratado uma senhora que cuidava da progenitora todos os dias úteis – trabalhava em part-time num colégio, com as mesmas funções docentes.
A Marieta tocou-lhe essa dedicação – o carinho com que ele falava da mãe, reconhecendo-lhe o amor com que o criara, mãe solteira, costureira, trabalhando de manhã à noite para superar os gastos – e sentiu que ele era bem formado, tinha sentimentos.
Entretanto, numa manhã do início de Abril, a mãe de Jorge levantou-se da cama, aproveitando a distracção da cuidadora, desequilibrou-se e caiu desamparada. Na queda bateu com a cabeça num móvel e ficou inanimada e a sangrar abundantemente. A acompanhante, aflita, telefonou para a escola e Jorge chegou a casa tão rápido quanto possível. Infelizmente, a mãe dele entrou em coma irreversível e passados dias faleceu.
Vários colegas foram ao funeral e Marieta não foi exceção. Confortaram-no durante a cerimónia e depois cada um foi à sua vida.
Jorge ficou só, estático, olhando para a campa semicoberta de flores, chorando baixinho.
À distância Marieta enterneceu-se, teve vontade de o abraçar mas o pudor impediu-a e deu meia-volta, dirigindo-se para casa.
Os dias decorreram na rotina habitual, Jorge remetia-se ao silêncio, não falava com ninguém. Os colegas entendiam esse comportamento, justificavam-no pela perda recente. Mesmo Marieta, ou por comodismo ou por timidez, também não se atrevia a meter conversa.
Depois, casualmente, ela soube que ele tinha concorrido para outra escola, situada num distrito distante. Nessa altura sentiu um aperto no coração… Injustificável, atribuiu-o a alguma ansiedade em vésperas de exames dos alunos. Mas o facto de ter começado a ter insónias, coisa rara nela que sempre dormira o sono dos justos, preocupou-a. E quando entrava na sala dos professores a sua primeira acção era sempre procurar Jorge com o olhar…
Aos poucos convenceu-se que a afetividade que inicialmente sentira por ele convertera-se em algo mais forte e ficou preocupada. Sem dar conta, esse sentimento avançara e tomara conta dela.
Ganhou coragem e um dia que o viu (ultimamente ele ficava na biblioteca, trabalhando no computador) ganhou coragem e foi ter com ele, amigavelmente. Jorge sorriu amargamente para ela, mas não falaram.
Depois foram mais dias em que não se cruzaram até que os exames nacionais tiveram início. Esses dias eram de grande agitação, pelos meios e responsabilidade envolvidos. E o aparente afastamento continuou.
Já em Julho, com a segunda chamada de exames a decorrer, Marieta calhou a fazer uma vigilância na mesma sala que Jorge. Como tinham que manter o silêncio na sala, quase não falaram.
No final da prova, depois da recolha e entrega no Secretariado de Exames, Marieta convidou Jorge para beber um café no bar da escola. Então conversaram sem outras preocupações, ela já pouco ligando aos olhares maliciosos de alguns colegas. Soube da localidade para onde ele tinha concorrido, com a certeza que ali ficaria colocado no ano letivo seguinte. Ela então perguntou-lhe porque tinha ido para longe.
Jorge respondeu-lhe que cansara de correr atrás do impossível e desviou o olhar para a parede. Precisava de mudar de ares, sair da casa materna, voar…
Marieta demorou a perceber, depois olhou para ele com doçura, percebendo que ela afinal também não lhe era indiferente. Vários pensamentos a assaltaram mas o facto de ter mais uma dúzia de anos que ele, arrefeceram-lhe o ímpeto. Jorge olhou-a tristemente, depois levantou-se e despedindo-se saiu.
Ela deixou de o ver na escola e soube então que ele entregara um atestado médico, justificando a sua ausência por doença. Até final do ano letivo, nunca mais o viu.
Passou-se o verão e em finais de Outubro, com mês e meio de aulas decorridas e após uma imensa luta interior, Marieta venceu o orgulho, meteu-se no carro e dirigiu-se à localidade onde Jorge agora estava a trabalhar.
Procurou a escola, parou o veículo junto à entrada e esperou que o acaso lhe permitisse vê-lo.
Após um dos toques de saída, viu-o a sair de braço dado com uma jovem sorridente, devia ser colega.
Mal disfarçando a desilusão, empreendeu a viagem de regresso reprimindo as lágrimas até que não aguentou mais, parou o carro na berma da estrada e chorou amargamente.