Ravenala  fingiu esquecer a pergunta sobre o casamento dela na Basílica; e o Frei, não insistiu nem insinuou aguardar resposta.
Despediram-se.
— Não sabia que me casei com uma carola!
Com sabedoria,  ela respondeu:
— Faz parte de nosso pacto, não te lembras?
— Sim, mas não faça  armadilhas para  me casar na tua igreja.
Guardou com tristeza as palavras dele: ‘ armadilhas...’ E entendeu perfeitamente, que era um aviso de que Fernão  jamais se casaria com ela.
— Quero romper o pacto que fizemos — disse ela.
— Estás propondo descasamento?
— Não! Quero romper o pacto de sermos anônimos, nada sabermos da vida do outro. Quero conhecer tua família!
— Vamos marcar um jantar com minha mãe! Sou filho único e meu pai é falecido.
Com que roupa eu vou — pensava Raquel.
 Escolheu uma roupa, nem tanto glamourosa, como em seus tempos de estrela, e cuidou   para não se dirigir a Ravenala, chamando-a de Vanini. Com certeza, qualquer desalinho de raciocínio causaria desconforto irreparável.
Refez cenas e cenários, contemplou  cinco anos de glamour, somados a  meio século de  posterior anonimato: duas faces a vida lhe ofereceu: a primeira, tecida com fios  mágicos de encanto e beleza,  aplausos, fama e beijos; a segunda, indiferença, solidão  e desprezo.  Sua maior recordação, palpável, era o Cadilac vermelho-acetinado com que, outrora, esbanjava elegância e beleza na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— A senhora guarda muitos traços de beleza, fino trato e bom gosto — disse a moça.
— Sou estrela que o vento apagou, minha filha.
Raquel faz uma pausa.
As linhas do rosto revelavam as noites mal dormidas, jornadas de glamorosa fama que hoje ela  trocaria por um bom descanso e uma velhice saudável.
— Para que me serviram os holofotes e as noites agitadas se agora só tenho o negrume da solidão? Não tenho mais azeite para acender minha estrela...
Riu.
A noite parecia imensa como se as horas andassem devagar. Alguma coisa Raquel escondia no olhar distante.
— Canhoto, Fernão? Não sabia que era canhoto!
— Quando nasci, um anjo torto me  disse: “Vai ser esquerdo, na vida, Fernão!”
— Gauche — disse Raquel esboçando sorriso drummondiano.
— Nem tanto sinistro assim — completou Ravenala.
— Pensei que o anjo torto fosse anjo do mal! Seria apenas um anjo canhoto?
— Anjos são ambidestros.
— Já deram asas aos anjos, mesmo eles não precisando delas para voar. Querem discutir o  sexo deles, e agora me vens trazendo anjos destros e canhotos, como se não bastassem os seres mitológicos que além de terem pernas, braços e asas, andam por aí com um arco atirando flechas no coração do amantes.
— Deus se serve da inteligência humana, para colocar no coração do homem a pedagogia divina.
— Que amor é este que transpassa com flechas o coração?
— Eros.
— Queres dizer, cupido.
 —Meus filhos — disse Raquel — o amor é lindo, e ao mesmo tempo, feio, se não vivido com maturidade... Amor não tem idade, não envelhece nem definha; nasce, cresce e se perpetua em escala infinitamente eterna. E por mais que já  se tenha falado do amor, quase nada foi dito. Há muito ainda que se viver para descobrir o verdadeiro amor. Amar é sonhar a dois os mesmos sonhos. Viver as mesmas emoções, partilhar da mesma sensação de dor ou de alegria. É um eterno retirar pedras do caminho ou desviar-se delas. 

***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...