UM DIA MÁGICO
Chegou-me às mãos uma carta com a seguinte notícia:
Um cão, de pelagem escura e um tanto quanto danificada,
bateu (com as unhas da pata), à porta da casa nº 1234;
quem atendeu foi um senhor de barba mal feita e olhar triste,
perguntou: pois não?,( como se fosse normal falar com um cão);
o cão, através do olhar, lhe contou que estava só e abandonado,
não reclamava tanto da comida, mas da falta de banho e carinho,
precisava de um teto, estava envelhecendo e a rua o estava maltratando...
O homem, sem supor que indecisão significa recusa,
abriu o portão e disse: entre...
O cão, de mansinho, adentrou o recinto, isto é, a garagem,
percebeu flores tristes nos vasos, de olhos secos e braços murchos,
subiu a escadinha até a porta da cozinha onde uma senhora,
de altura mediana e um tanto quanto curvada, fritava ovos...
Ela o olhou um tanto quanto curiosa e quase sem nenhum interesse,
lhe disse: quer ovos?
O cão, mui gentil, recusou a princípio, mas lambeu os beiços
pois o cheiro da comida lhe enchias as narinas e disse
a si mesmo: -essa senhora deve ser uma cozinheira de mão cheia...
O homem, à suas costas, dizia, vamos, vamos, agora você
já mora aqui, venha conhecer a casa, de hoje em diante você
tem onde morar...
Dizem que cão não chora, mas ele chorou disfarçando as lágrimas,
a casa era grande, três quartos, um era do filho que havia morrido ainda novo, de rubéola, o do meio um quarto de hóspedes,
que nunca vinham, o outro era do casal, sala enorme com TV e som, e o quintal era o lugar mais alegre da casa, coisas espalhadas,
vasos com rachaduras, escada velha, mesmo assim sentiu
que ali seria seu canto, sua casa de repouso, seu lar...
A senhora apareceu na porta e disse: vou chamá-lo de João,
o nome do meu neto que quase nunca vem aqui; você tem cara
de João, cara de moleque levado, vem cá que vou lhe dar um banho, você está meio sujo...
Uau, que alívio; que banho maravilhoso, as pulgas e carrapatos
foram arrancados, se sentiu mais leve, chacoalhou e saiu ao sol
da varanda, rindo, (se é que cão ri), o homem passou a mão no
seu dorso, o afagou, ele se disse: ganhei meu primeiro
carinho, ô coisa boa...
Escutando uma conversa aqui, outra ali, ficou sabendo
que a senhora, depressiva, às vezes se fechava no quarto
e se punha a rezar em voz alta, bem alto, chamando pela morte,
não queria mais viver, adeus ao mundo, chorando...
O homem, resignado, a acompanhava, cuidadoso, dava-lhe
os remédios, prestativo, angustiado, amoroso...
Aos poucos João foi chamando a atenção da senhora,
ela passou a lhe confiar seus mais íntimos segredos,
queria saber como era o céu, se tinha laranjeiras,
chuveiro quente e uma cozinha limpinha para preparar seus ovos...
João ria (se é que cão ri), e via que ela se preparava para sair daquele buraco onde só as almas com problemas se enfiam...
Os dias iam e vinham varridos pela vassoura do tempo,
a senhora já acordava senhora de si, augusta, limpando a casa, dando banho nas louças, quase cantando, o rádio, que havia aposentado sua voz, agora resplandecia com cantigas rurais,
no ar notícias apanhadas no pomar da vida, a vida estava
de volta àquele lar...
João, que havia ganhado de presente um belo duo de pessoas sensíveis, latia, feliz, e se enroscava nas pernas do homem,
que ria (se é que homem ri), e, sem saber, restaurara os corações
de porcelana de duas pessoas outrora tristes, mal sabendo ele que,
da janela, numa casa do Paraíso, um anjo dizia ao outro:
- olha lá o João, enviado para fazer o amor sair do porão
onde vivia escondido, aquecendo antigos tristes corações,
dando sentido à travessia dos homens...
João, que parecia sentir e ouvir a conversa dos anjos, ria;
(se é que cão ri...)