Um Conto Sobre Fidelidade 4ª Parte
Capítulo 4
Como Um Tênis de Número 36
Ele era azul com listras brancas, o meu favorito aos oito anos de idade. Aliado com a minha imaginação, me fazia acreditar ser a pessoa mais veloz sob a face da terra, como um super-herói. Até que, na mudança, acabou sendo esquecido na antiga casa. Minha vida foi então de muitos tênis, menos aquele. O sentimento que me acometia era semelhante, porém menos intenso do que o de estar do lado de Flávia, como se só assim o mundo tivesse um sentido real e objetivo. Quando atendi aquela ligação, toda a esperança que tanto havia se desgastado durante esses dias, reacendeu-se como uma fênix flamejante emerge das cinzas. A sua voz falando o meu nome era a coisa mais linda que já ouvi e que agora, pela recente escassez, atingira um valor indescritível.
Não havia muito o que ser dito, não que ela houvesse acreditado na minha inocência, mas disse que de tanta saudade, acabaria me perdoando pela traição. Na hora, quis refutar aquilo, mas decidi deixar para uma discussão futura, por hora, bastava-me ter ela de volta. No dia seguinte, eramos novamente um casal na escola, com direito a andar de mãos dadas e todo o resto. Os olhares de pedra haviam cessado, tudo retornara ao seu devido lugar. Como se não fosse o bastante, ao chegar em casa, descubro que minha mãe havia encontrado o par de tênis da infância, ao ter esquecido que o guardou em uma outra caixa. Foi o único dia em que eu pensei seriamente em jogar na loteria. Procurei um par semelhante na internet, mas não encontrei. Aquele calçado que era quase uma parte de mim, agora já não me servia mais. Na época, calçava 36 e agora 41. O pé não entra, ou quando entra, aperta os dedos e a parte detrás corta o tornozelo. Suspirei fundo: era hora de me desfazer deles.
Virgínia não havia ido a aula, e até essa altura, eu já não mais a odiava. Me parecia injusto culpá-la por algo, ainda que errado, que era justificado pelas mesmas ações que as minhas: o amor. Como você pode se apaixonar por alguém que você mal conhece? Quem era Virgínia no final das contas? O perfil dela em uma rede social acabou revelando muita coisa, os filmes, músicas, viagens, amigos. Ela era alguém bem inteligente, artística, criativa, interessante, bonita... Esse último adjetivo me fez tomar um outro banho de água fria. Sua figura agora era intrigante, como se motivasse uma vontade incontrolável de ter que conhecê-la, uma outra conversa, mas fazer isso era como pedir mais um atirador para o pelotão de fuzilamento. Acaso estaria eu me apaixonando por ela? Não era possível, mesmo que isso fosse verdade, eu não poderia continuar vivendo em meio a fofocas, além do que, tinha reatado o compromisso com minha namorada, e que tipo de cara eu seria se jogasse tudo isso para cima. Minha consciência a essas horas tinha a mesma precisão de uma balança analítica que detectava a menor partícula de desconforto e expressava seu valor em vários caracteres, que em um arredondamento perfeito, facilitava o cálculo de que, não importava quais as chances ou elementos: aquilo nunca daria certo.
Não importa o quanto você goste de um objeto, assim que ele deixar de ser útil, irão restar apenas dois caminhos, ou você o guarda como um preservador de boas memórias, ou você o descarta acompanhado das memórias ruins. Não é assim com pessoas, ou pelo menos, não deveria ser. Flávia não era um tênis, e mesmo que algo ainda me incomodasse, eu não seria desumano de descartá-la, ainda que futuramente me sufocasse ou cortasse meus tornozelos: meu amor ia além de toda dúvida ou dor. Minha fé no amor estava renovada e qualquer outra coisa além disso, era perfeitamente descartável.
Continuei meu passeio pela internet até me deparar com o álbum de fotos da festa de Blumenau. Sorri bastante das trapalhadas e lamentei por não ter ido. Beber, junto com o pessoal, dançar com eles, comer bastante, e se Flávia pudesse ir comigo, namorar um pouco. Ir sozinho também não teria muita graça, afinal, todos estavam acompanhados, até mesmo Juliano, que nunca se envolvia em compromissos, estava beijando apaixonadamente uma jovem loira, de blusa branca e calça jeans escura, com uma marca distorcida em forma de coração no braço...
Se voltar no último parágrafo do segundo capítulo, vai saber por que eu quase quebrei o monitor do meu computador.
Continua...