Nosso primeiro amor
Um passeio pelo passado levou-me à velha Rizatinho e seus espaços sem cerca. A colônia era uma fileira de soldados uniformizados, toda pintada de branco, quando ainda, era possível dizer a cor. Ultimamente ela tinha a cor da terra que cobriu tudo por ali, os telhados, o poço, a casinha, as crianças, os pés dos adultos e os sonhos de muitos.
Explorando um pouco mais o passeio, encontro meus nove anos, aluno da curiosidade exacerbada, e um sonho que andava de botas, usava chapéu e visitava a colônia nos finais de semana. Naquele tempo a novela no rádio deixava as moças sonhando com o príncipe encantado, e eu, com o namorado da Dasdores. Moço bonito... exatamente como era desapareceu no tempo, mas os óculos...ah, os óculos... eram pontes sobre abismos!
Passava a mão nos meus cabelos, na altura da sua cintura, e fazia promessas, para o meu deleite, de me esperar. Mas não esperou, casou mesmo foi com a namorada, numa festa linda, num dia de São João. Nesse dia, eu vi um príncipe de verdade. Nunca o vi tão encantado. Ah, vi sim, numa noite que não consegui dormir pensando ouvir sua risada.
Levantei-me. O terreiro exalava um cheiro de criança dormindo, grilos e sapos num coro afinado; e a lua nunca tão imperial. Lá está ele e tem nos braços a namorada, no rosto uma máscara de felicidade. Sussurra alguma coisa que a deixa extasiada. Não imaginam que no mundo do desejo estão sendo espionadas, as mãos passeiam desprotegidas e são engolidas pelo decote. E os corpos ressonam embalados no vai e vem de uma dança exótica. Fico plantada um bom tempo aprendendo uma lição de gente grande numa aula improvisada.
Corro para o quarto. A certeza da morte próxima revira-me na cama e as molas reclamam. Os sussurros fazem ecos, os grilos continuam cricrilando e os soluços eu tento abafá-los com as mãos até que durmo ouvindo só o tique-taque do relógio, e sonho com os sermões do padre Zico falando do diabo fantasiado de serpente, paraíso e pecado.
Manhãzinha, o sol ainda piscando de sono, sou arrancada da cozinha.
__ A conversa não é para criança.__ Saio e vou escutar atrás da casa como já fiz tantas vezes, atrás da casa, da porta, debaixo da mesa. Nesse livro, eu aprendi tantas lições, algumas, até bem amargas.
D. Chica, mulher de pouca conversa, passa correndo e ordena que busquem a parteira antes que seja tarde. Dasdores, há dias na casa da mãe, espera um bebê que está atrasado. Isso eu ouvi no meu esconderijo, e vi quando entraram levando uma pilha de lençóis, uma bacia de banho e um rosário enrolado no braço.
De novo a cegonha passaria pela colônia e eu não veria. Como não vi papai Noel, o lobisomem e nem a própria cegonha em outras jornadas.
Duas horas mais tarde o movimento é grande, e para minha alegria, o marido é chamado. A população feminina está concentrada. As crianças foram levadas para longe, mas eu tinha as pernas dobradas dentro de uma caixa atrás da casa. Os olhos empurrados contra um buraco cavado pela queda do reboco. As mãos seguram a parede, os dentes, a língua e o coração. Dasdores está deitada, este somente uma blusa. A barriga imensa, as pernas e parte das nádegas estão desnudas... molhadas. A cara trocou de lugar com a careta e a boca virou uma fábrica de gritos e suco gástrico. A parteira exibe uma cara preocupada, arranca um anel do dedo e por uns minutos uma das mãos some no interior do corpo. A boca reclama de um gosto que identifiquei mais tarde: terrão velho.
Os lençóis são vermelhos?! Eu não vi quando os brancos foram trocados.
A mãe e o marido entram, ambos estão calados. O centro da cama é um palco onde os gritos atuam até a exaustão torná-los uivos roucos, e agora fazem um dueto com o choro do marido.
A mãe segura uma das pernas, ele, a outra, e a parteira, uma em miniatura. Uma vizinha é colocada em cima das dores. O ventre é comprimido... apertado... sacudido... agarrado... solto.. estremecido...flácido. Os atores deixaram a cena. Na plateia, os olhos, as mãos, o céu das bocas.